Vida pequena

Luiz Busatto

Comecei a escrever Vida pequena em 1984 durante o curso de doutorado em Literatura Brasileira feito na UFRJ. O livro começa ao redor das Cenas Cariocas, como imperiosa necessidade de denúncia. Frequentei um ambiente citadino que não condizia em nada com o epíteto de "maravilhosa" atribuído à cidade. Escrever era uma força estranha, uma espécie de catarse. Como ver e presenciar tudo aquilo e ficar calado?

Durante o curso, fui obrigado a reler a Odisseia, da qual, em outros tempos, traduzira episódios do grego. É que no curso de graduação em Letras Clássicas tivemos que conhecer, no original, a lIíada e a Odisseia em passagens consagradas. Isso há muitos anos. Na recente releitura, fiquei impressionado com a cena de Penélope conversando com o próprio marido, Ulisses, disfarçado em mendigo para não ser morto pelos pretendentes. Ulisses, o astuto, o idealizador do cavalo de Troia e, por consequência, do tradicional "presente de grego". Na sala do palácio, depois das abluções rituais feitas aos hóspedes, Penélope mandou que ele se assentasse e comesse porque a vida é curta. Daí a epígrafe e o tema, ou melhor, o leitmotiv do livro.

A vida é um banquete, e muito curto. Não há poema ou parte do livro que não se ressinta direta ou indiretamente dessa problemática. Há uma sabedoria humana em relação à vida que parece perene. Herdamos, dos gregos, peças de arte e momentos sublimes para a história da humanidade. Não se pode negar.

Há, em Vida pequena, uma tendência para a ironia e para a paródia. Não sei se o livro ficou muito crítico. A ironia bem utilizada é um instrumento pedagógico, é um apelo à inteligência do leitor, já que supõe ser ele conhecedor dos códigos em que se expressa, dos ditos e dos subentendidos. A ironia, sem dignidade, descamba para o sarcasmo. Nas Cenas Capixabas, por exemplo, o poema "Vitória" não visa à ofensa a personalidades. Estamos no presente. A vida está correndo. Vitória é igual a Ítaca, a pequena ilha de Ulisses, um pequeno reino, uma pequena vida cheia de pretendentes que dilapidam os bens alheios, física e moralmente. Com toda sua beleza natural, Vitória vem, em tudo, imitando o Rio de Janeiro. E assim, um grupo de cenas chamou outras cenas. A organização do livro parte do homem pontual perdido na multidão e vai ao vasto mundo.

Na feira de Jardim da Penha, um cego tocava um violão todos os sábados. Doía mais que alegrava. Aquilo sempre me lembrou Homero, que, por tradição, era cego e era um grande rapsodo. E por aí vai...

Digo isso não para proteger a mediocridade ou mau jeito de escrever. Talvez eu seja um grande cego, mas tenho certeza de que não sou Homero. Os cegos devem se consolar com o Tirésias de Sófocles, que, mesmo sem os olhos, era vidente e mensageiro dos oráculos. Para o banquete da vida, não é preciso só ver. É preciso viver. Sabendo que a literatura é dicção, eu digo, sem pedir desculpas, o que vivo. Como "homem do povo", não escrevo talvez como devesse, mas escrevo (e publico) como posso. Isso é tudo.

 

Poemas retirados de Vida pequena

S.O.S.

Socorro!
Roubaram-me a janela!
A vida está preta
falta-me oxigênio e ventilação.
Senhor prefeito, senhor governador
    senhor presidente, excelentíssimos!
a cidade é um caos.
A parede é tão alta
que, obliterada a inteligência,
eclipsa o sol.
Minha vida é um pesadelo
os sonhos me aprisionam
mas a janela...
Quem vai abrir a janela
e devolver-me a paisagem?

 

Vitória

Arrancai de vossa ilha essas pestes
públicas, esses germes do crime e
da miséria.
Thomas Morus, A Utopia

cidade bustificada
cidade bestificada
em cada canto um busto
em cada canto um besta

ilha, o que é ilha
que sempre brilha
de pretendentes?
ilha de sal e de sol
ilha de luxo e de lixo
ilha de mel e de fel
ilha delícia de ladrões e de polícia
ilha de ricos e de ratos
ilha de colunas e de calúnias
ilha pedestre de pederastas
ilha de poetas e de patetas
ilha bacana de dar banana
ilha de Vitória e derrotas

subúrbio carioca
sonhando com Nova Iorque

 

Receituário acadêmico

     Viva o imortal!

Não toque o imortal que
de hora em hora é cumprimentado.
Toquem antes os sinos, buzinas e
campainhas!
Efusivos parabéns
Merecida honra acatado homem de letras
Impossibilitado comparecer cumprimento-o
Novo imortal, os que vão morrer te saúdam!
Desculpe-me ausência motivo doença
Agradecemos convite posse nesta douta
Academia
Congratulações brilhante e significativa
vitória
estamos felizes você é a glória...
Como vai o seu ego?
Viva o mais novo imortal das nossas
letras!

Assim vou dormir a primeira noite
puxando sobre a alma
uma colcha tecida de fórmulas prontas

tumba verbal da imortalidade.

 

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