Guilherme Santos Neves – Coletânea de Estudos do Folclore Capixaba. 1944-1982. Seleção, organização e edição de texto: Reinaldo Santos Neves. Vitória, Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo, 2008. 2 v. Patrocínio: Petrobrás.
A preocupação constante de Guilherme Santos Neves de defesa e preservação do folclore não era absolutamente de natureza estática, como peças guardadas cuidadosamente. O sentido de preservação que ele tanto defendia era de natureza dinâmica: a preservação através do registro das manifestações folclóricas para mantê-las vivas, atuantes, no bojo da sociedade em transformação. Daí seu carinho especial com os velhos mestres objetivando a transmissão desse saber, tanto quanto possível vivo, ao invés de simples reconstrução. E esse interesse era explicitado metaforicamente como a passagem de uma tocha olímpica, ainda incandescente, às novas gerações.
Não foi por acaso que dentre os seus trabalhos mais antigos, incluídos no volume, está a palestra “O Folclore nas escolas”, de 1947. Diz ele na abertura, após esclarecer que não tinha o propósito de subestimar a orientação pedagógica corrente:
Não tomeis, portanto, minhas palavras senão como contribuição modesta, aproveitável talvez, para melhor despertar e florir, no espírito e no coração dos pequenos escolares, um mais profundo sentimento de apego, de reverência e de orgulho para com tradições da nossa terra e da nossa gente (I:61).
E destaca “o valor pedagógico, a importância educativa do folclore, aplicado nas escolas, em função objetiva, social e patriótica” (I:63). É o ideário que desenvolveu durante sua vida, cuja projeção salta das páginas da Coletânea.
Guilherme Santos Neves, com sua característica modéstia, sugere um painel de atividades no âmbito da escola, que abrange: Rodas, em seus vários subtipos, Rodas de estribilho ou de repetição (Fui ao Tororó...) Rodas dialogadas (A pobre viúva), Rodas com danças, com mímica, rodas lentas ou corridas, tristes ou alegres. O uso de temas folclóricos nas aulas de desenho, trabalhos manuais e modelagem; ginástica rítmica com cantigas de roda ou jogos para classes maiores, dentre outras atividades.
Guilherme Santos Neves nesse verdadeiro programa educacional ia além do aproveitamento do folclore, visando a atividade em si mesma como “estimulante de educação moral e intelectual e como excelentes veículos de socialização e disciplina”. Assim é que essa atividade deveria envolver na escola tanto classes menores quanto as maiores, mistas ou não. E para estas indicava jogos de correr e saltar, numa lista abrangente com barra-manteiga, trem de ferro, vilão do cabo, chicote queimado, carniça, picolé, bento-que-bento, quatro cantos, o jogo do lenço, o pulsar na corda, dentre muitos outros.
O aproveitamento da literatura oral não deveria limitar-se ao simples narrar, mas dar vida aos personagens dos contos de fadas, mitos ou fábulas, como, por exemplo, o Saci Pererê, o Negrinho do Pastoreio, o Jabuti, o Gato de botas, o Pequeno Polegar, Aladim e a lâmpada maravilhosa, Ali Babá, através de encenações.
Do mesmo modo, o folclore musical infantil, com os cantos e bailados tradicionais deviam representar item importante nas festas escolares.
Essas sugestões, apresentadas há sessenta anos, permanecem atuais em programas de atividades no âmbito da escola.
Professor de Língua e Literatura, era natural que Mestre Guilherme privilegiasse a literatura oral, estudando-a sob os mais diversos aspectos. Suas pesquisas não se limitavam à recolha e publicação, mas também à análise da matéria verbal, que estrutura a literatura oral, transformando-a em obra de arte. A oralidade é fundamental na atividade humana e sua presença nas manifestações folclóricas assegura a preservação e a própria dinâmica da cultura popular. A voz é nosso estar no mundo; ela organiza as sociedades humanas e constitui o instrumento fundamental de comunicação entre os povos ágrafos.
Desse modo, oculta ou dominante, a oralidade está na base das manifestações folclóricas. Mesmo no artesanato, em que as mãos concorrem com a voz, a observação com o ensino, ela complementa o fazer mediante a transmissão do saber milenar.
A difícil seleção para a organização da Coletânea, dentre cerca de mil artigos, explicitou-se pela possibilidade de inclusão deles em mais de uma categoria. A decisão final de Reinaldo Santos Neves de reunir a quarta parte, 250 itens, do extenso acervo, comprovou a abrangência e diversidade dos estudos de Mestre Guilherme. Entretanto, essa diversidade não significa dispersão, como poderia parecer. Mestre Guilherme compreendia a cultura folclórica como um todo orgânico, um universo em que as manifestações se interpenetram e dão significado à atividade humana.
Na Banda de Congos, dentre muitos exemplos, estão presentes o texto oral, através dos cantos, a música, a dança, o artesanato na elaboração de instrumentos como a casaca. Em outros folguedos como a Folia de Reis, o artesanato se apresenta na confecção da indumentária e das máscaras, estas, em muitos casos, resultantes da caçada de animal pelo próprio brincante. Portanto, embora necessariamente distribuída em onze categorias, não é afetada a unidade da obra.
Luiz Guilherme Santos Neves na abertura da obra − “Quem embarca, quem embarca?” ressalta a vocação de pesquisador de Mestre Guilherme mostrando seu envolvimento com os grupos populares, sua familiaridade com os participantes: “Lá estava o folclorista vibrante e irrequieto em meio aos brincantes, misturado ao povo, e pelo povo e pelos brincantes reconhecido e estimado como um igual, porque igual a todos se fazia ele, apesar do tratamento de Doutor Guilherme que lhe era deferido” (I:12).
A coletânea, em suas 1.167 páginas, divide-se nas seguintes partes: Prólogo, Teoria e Metodologia; Literatura oral e linguagem; Crendices, superstições e medicina popular; Tradições, costumes e culinária; Folclore infantil; Festas e Folguedos populares; Dramatizações populares; Música folclórica; Personalidades; Registros, além de dois anexos: “A Cabula: um culto afro-brasileiro”, de D. João Batista Correia Nery e Dalmácia Ferreira Nunes, portadora de folclore; Bibliografia; Cadernos de partituras; Álbum de fotografias e Álbum de ilustrações; O autor (Biobibliografia) e Equipe de Produção.
A vasta experiência e acuidade de Mestre Guilherme levaram-no a conceito próprio de algumas manifestações folclóricas. Por exemplo: “Poesia popular ou folclórica é a que nasce e vive no povo, que nele se cria ou recria e se altera, ou aquela que o povo aceita e adota como sua, e dela se vale para seu uso ou distração” (I:98). Sobre folclore: “Poderíamos até formular a seguinte definição − muito simples e correta − embora aparentemente constituísse um círculo vicioso: folclore é a ciência que estuda o folclore (I:106). E mostra sua posição no contexto das ciências humanas:
Folclore é uma das mais amplas áreas da Ciência do Homem. Um dos ramos da antropologia cultural, tão importante quanto a etnografia ou a lingüística. Liga-se ele diretamente à sociologia; tem relações estreitas com a história, a geografia, a psicologia, a medicina, a literatura e com outras ciências e com outras artes (I:115).
Fernando Achiamé, na introdução da Coletânea traça o perfil de Mestre Guilherme, sua presença no contexto nacional ligada aos estudos de folclore, a extensão e importância de sua atividade e da obra realizada: “Um perene canto de amor à cultura popular da sua terra natal” (I:47).
A contribuição portuguesa é destacada como matriz de nossas tradições. Com relação à indígena e africana, Mestre Guilherme afirma, comparativamente: “Sabe-se que a herança indígena é, em nosso folclore, bem menor do que a vasta contribuição negra, que, até hoje, o enriquece, colore e sonoriza” (II:263). Merece também atenção a presença de outras culturas que se integraram. São exemplos: Presença açoriana no folclore capixaba; A Galícia e as nossas trovas populares; Costumes nupciais da Pomerânia entre colonos teuto-brasileiros; A França no folclore capixaba.
Cabe destacar, dentre os estudos sobre literatura oral: Presença do romanceiro peninsular na tradição oral do Brasil (publicado na Revista Brasileira de Folclore, I, 1961), fonte imprescindível para os estudiosos da poesia tradicional; Vestígios do -e paragógico no verso popular do Brasil; Vestígios do leixa-pren na poesia popular capixaba; As neumas das canções de berço em Portugal e no Brasil; Variações sobre o tangolomango; As doze palavras ditas e retornadas. Seria extensa a lista de referências às numerosas manifestações folclóricas estudadas por Mestre Guilherme, incluída na Coletânea, cabendo lembrar que representam apenas uma quarta parte do acervo reunido e examinado por Reinaldo Santos Neves.
Dentre as personalidades, comparecem em seus artigos: Sílvio Romero, Afonso Cláudio, João Ribeiro, D. João Nery, Cecília Meireles e D. Pedro II, pelos registros do folclore capixaba em seus Cadernos de viagens.
Mestre Guilherme dedica uma página de afeto a Dalmácia Ferreira Nunes − Dalmacinha − servidora de sua casa, como fizeram, dentre outros, Almeida Garrett − a boa Brígida −, Sílvio Romero − a velha Antônia e Luís da Câmara Cascudo − a Bibi. Dalmácia de excelente memória e detentora de precioso acervo: “Aliás, sempre senti que na boca de Dalmácia as quadrinhas avulsas tinham, por vezes, a intenção e sabor de provérbios” (II:410). Mas não eram apenas quadrinhas. Mestre Guilherme recolheu estórias, superstições e crendices e uma infinidade de trovas.
O narrador/cantor de folclore não é mais visto como aquele ser anônimo, mero repetidor de narrativas ou cantos, mas como centro de estudos na atualidade. Ele utiliza com naturalidade metáforas, comparações, imagens, possui uma sintaxe e um estilo próprio, manifestados em sua performance, como qualquer ficcionista ou poeta.
A visão de Mestre Guilherme sobre esse conjunto de manifestações folclóricas dá a seus artigos não apenas a fidelidade colhida nas fontes, mas também a interpretação do papel da cultura popular na formação da cultura brasileira.
Classificado pelo folclorista Renato Pacheco como o “supremo estudioso da cultura popular, no Espírito Santo”, a obra de Guilherme Santos Neves, de caráter enciclopédico, continua a alimentar o conhecimento de quantos pesquisam o folclore capixaba, bem como a orientar as novas gerações de estudiosos na tarefa de revelar e analisar as riquezas da cultura popular espírito-santense.
Braulio do Nascimento é presidente de honra da Comissão Nacional de Folclore.