Trança

Marilena Soneghet 

Escrevi essas crônicas pelo puro prazer de cavoucar na memória pequenas histórias – cenas de um tempo – imagens vistas pelo caleidoscópio de uma garotinha.

Algumas recordações são vagas; outras, irrequietas e presentes, parecem querer tocar as fímbrias da eternidade.

Desde logo entendi a amizade das árvores. À medida que fui crescendo atirei-me às grimpas, bicando as frutas, agitando as asas, de galho em galho, até descobrir o quanto era fácil alcançar, em voos abertos, horizontes. Vagavam, entre os sonhos pessoas reais (ou nem tanto). Mistérios, havia. E medos também. Os fatos eram franqueados ao imaginário que os revestia de singular atmosfera.

Vitória com seus bondes, ladeiras, escadarias, Vila Velha com sua simplicidade de vila jamais velha e suas praias, compõem o cenário onde me delicio a contar histórias. São histórias de “gente e passarinho” – passarinho, eu. Papa-cisco ou pardal, ciscando desapercebida, aprendiz de voos e gostando demais da liberdade de ser ninguém.

 

Trecho de Trança

Minha casa conhecia a felicidade.

Um belo dia... Não: um triste dia, de dolorosa recordação, veio a mudança. Num grande caminhão levaram tudo que era dela: os móveis, a fileira de camas, o bercinho feito pelo papai. Levaram os risos e as correrias, o atropelo e os personagens. A amiga invisível desapareceu para sempre, o macaco ficou doente, a passarinhada, estonteada, não achava sossego. Algo faltava! A grande casa conheceu a dor. Chorava pelos cantos vazios.

As janelas se fecharam para o mundo – para que circo? Procissão? E um bonde que não trazia o papai?

O tempo foi passando. Só não passava a saudade. E como se não bastasse, rudes pés a invadiram, vozes, mãos que insensíveis a desfiguraram. A casa ganhou fachada nova, novas janelas, um muro diferente (ela preferia as velhas roupagens). A janelinha do sótão com seu olho só perdeu o mistério – aumentaram, trocaram, sei lá. Ganhou um friso metido a besta. E gente nova, gente estranha.

Andou um tempo casmurra. Custou a acostumar. Mas acostumou. Havia crianças, risos, palmadas, correrias. Se não era a mesma coisa, sempre dava para embalar a saudade.

Porque a casa conheceu a saudade.

Anos se passaram. Seu coração de tijolo, derretido, aprendera a amar os novos moradores e os aconchegava com igual carinho.

Casa grande, antiga... Para que servem estas casas grandes, antigas? Só o terreno vale um dinheirão. Que significado pode ter a fresta no assoalho do sótão por onde – com gosto de segredo – olhinhos gulosos desvendam o lá embaixo? E o beiral com seus ninhos de cambaxirras, e as tábuas do assoalho que assombram as madrugadas com misteriosos estalidos, fantasmagóricos passos de ninguém? E o aconchegante calor da cozinha de apetitosos odores, o silêncio das modorrentas sestas na penumbra do quarto, um zumbido de mosca a esvoaçar em torno ao cortinado? E a atmosfera que guarda em seu bojo risadas, conversas, sonhos, tristezas, vida – que lhes dá alma ao coração – tijolo derretido de tão latejante amor?!

A grande casa conheceu a ingratidão.

Virá um trator para derrubá-la e do quintal arrancarão frenéticos as últimas árvores que resistiram ao tempo.

Eu nasci naquela casa. É, aquela da esquina, com o muro caído, as janelas arrancadas, o reboco ferido... O reboco ferido... O coração ferido.

 

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