Torre do delírio

torre de delírio construída
de signos, intersignos e
fantasmas oníricos

 

PRÓLOGO

Esta divulgação através do site Tertúlia Capixaba do texto da Torre do Delírio, publicada pela primeira vez em 1992, com ilustrações de Rômulo Salles de Sá Filho, tem para mim o caráter de uma segunda edição do livro. E agradeço ao anfitrião Pedro J. Nunes, responsável pelo site, a oportunidade que me dá.

Misteriosos e irrealizáveis são os caminhos do fantasioso.

Partindo-se desta premissa, nas fantasias literárias não cabem nem o ridículo, nem o exibicionismo.

É dentro deste foco que vejo hoje, 26 anos depois de serem publicados pela primeira vez, os textos da Torre do Delírio.

Envelheceram no tempo?

Não me cabe responder à pergunta. Mas por certo envelheci eu e, quando volto para a Torre o olhar agora marcado pela distância temporal, já não a vejo da mesma forma como a encarava antes, quando a escrevi e publiquei.

Teria escrito tudo de novo, seria outra pergunta a ser feita, e que me faço.

A fórmula verbal “escrito tudo de novo” presta-se a duas interpretações: a) escrever tudo da mesma forma, revivendo a mesma experiência literária; ou b) escrever de forma diferente (nova) a primeira versão.

Mas vejo que ainda resta uma terceira possibilidade a ser examinada: a de que hoje eu não mais escrevesse os textos que compõem o fantasioso delírio da Torre.

Bem, e daí? – eu me indago novamente.

Daí que se eu provoquei a dúvida, cumpre-me dar-lhe solução, para o quê recorro a Jorge Luis Borges. Mesmo porque tem ele muito a ver (sem que tivesse culpa) com o processo de criação dos textos que originaram a Torre do Delírio. (1)

Diz Borges: “Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras” – escreveu o notável escritor  argentino.

Essa métrica borgeana, ainda que dela eu não me tivesse valido conscientemente quando escrevi os textos da Torre do Delírio, em 1992, inconscientemente a apliquei.

Portanto, se os textos foram elaborados do jeito que foram, e assim publicados, republicá-los é uma questão de retornar ao status quo que ficou no ponto em que foi deixado. Para o autor que vos fala, o antes ou o agora, em relação aos mesmos, dá no mesmo. Os textos são o que são por não serem o que poderiam ter sido.

Tendo, pois, chegado a esta brilhante conclusão só me resta finalizar este Prólogo com um oportuno tenho dito.

 

SIGNOS

 

 

OS SIGNOS

 
Espectros de mulheres escapam-me da mente – estranhos seres de signos imaginários. Eu as recebo na minha torre sem janela, da qual sou prisioneiro e onde cabem minha loucura e minha solidão.

É uma torre ensimesmada, recolhida em penumbra, despojada como um convento e cujo requinte único é o leito fosforescente no qual apuro o marfim dos meus delírios.

As mulheres, atordoantes e sucessivas, aparecem numa espiral de alucinações.

Umas passam através da porta – o que não é problema para fantasmas – e assim saem; outras se vão pela escada em caracol, no canto da torre. A escada leva, possivelmente, à coroa da torre ou a andares que se interligam até o infinito.

Que estranho poder me impede de ir a este cimo pela escada em caracol? Algumas vezes chego a pensar que já estive nessas paragens, se elas existem. Mas sei, verdadeiramente, que nunca estive lá e que, quando isto acontecer, terei morrido.

 

1

UNA

Eis que me chega Una, a primeira visitante, trespassando a porta fechada, que não abre nunca.

Chega numa bolha de bruma, agitando levemente o ar quente da torre. Tem a rara forma do número 1: é espigada e lisa como uma cobra, de rosto prognata e dentes ofídios.

Seu signo é Basilisco, o ser temível. Como as mulheres deste signo, Una é dissimulada e silenciosa. Seu olhar petrifica, sua mordida resseca. Ela é, portanto, um risco de morte extraordinária.

Acolho-a nos meus braços, pois sabe a que veio. Dançamos em torno da cama, que reluz no escuro, ela apoiada nos meus pés enquanto a conduzo de um lado para outro.

Apesar disso sinto a resistência do seu corpo junto ao meu. Não ouso encará-la ou tocar-lhe os lábios. Flutuamos calados e desconheço o sibilo da sua voz.

A dança, cheia de silêncios e volteios, é apenas protelatória: adia o desenlace indesejado, mas inevitável. Tenho de submetê-la para lhe impor o ritual que eu e ela conhecemos, mas que não nos dá prazer.

Em seguida, sóbrio como um adventista, acompanho-a até a porta, que ela atravessa diáfana.

Sabíamos que seria assim: ela viria silente, dançaríamos em sintonia xifópaga sem nos olhar, evitando beijos e dispensando palavras como quem cumpre as regras de um ofício. Eu a possuiria sem som e sem fúria e, depois, a escoltaria até a saída para me entregar, finalmente, à quietude de minha triste sobrevivência.

 

2

Seu nome era Denaide, mas eu a chamava Dê. Seus cabelos eram louros, tombados sobre a face como uma cortina de ouro. Trajava um vestido cintilante, feito de escamas de peixe, conservando a branda umidade do mar e o discreto cheiro de maresia, que impregnava a cabeleira solta.

Simurg era seu signo.

As mulheres deste signo, afáveis e compreensíveis, desdobram-se em cicios quando estão no cio e têm uma percepção fora do comum dos sentimentos humanos.

Quando ela chegou deu-me a mão a beijar, num gesto aristocrático. A mão era branca e fina.

Por entre seus cabelos louros, caídos sobre a face, vi-lhe o sorriso meigo nos lábios pálidos e os olhos tristes, porque eram sábios. Saudou-me lacônicamente dizendo ei, mas foi como se dissesse desfruta-me.

Dentro de mim, de uma antiguidade sem data, cultivava a memória dos seus beijos. Mas não a beijei nem a cobri de carícias. Mantive-me corretamente arcanjo, desfrutando-a contemplativo.

Junto permanecemos três dias e três noites, em absoluta castidade. Na terceira noite foi-se pela escada em caracol de degraus estreitos, mas precisos.

Casta como veio, casta e intocada partiu. Deixou, porém, no corrimão da escada os cabelos dourados, pendentes em fios longos, recendendo suavemente a maresia.  

 

3

TRÊ 

Até hoje ignoro se o nome Trê, de minha terceira visitante, era apócope de três ou abreviatura de tresloucada.

Pois tresloucadamente veio, irrompendo na torre como um furacão, arrebatada e desnuda. Compreende-se: seu signo era Harpias, e as nascidas em Harpias são estouvadas e insaciáveis.

Os olhos de Trê eram gazelas de luz. Em sua pele os pelos se eriçavam suscetíveis ao toque dos meus dedos bandoleiros. As nádegas, redondas e hemisféricas como os seios, fremiam febris quando eu as apalpava.

Trê gozava cinco vezes num só gozo, estremecendo o leito nos parafusos de sustentação. Na hora morredoura do êxtase, enquanto eu a livrava das Harpias que lhe exasperavam as carnes, ela disparava gritos paleolíticos de combatente possessa.

Seus gritos de guerra – guerreiros, ouvi – eram filhos do vento; seus brados de gozo – guerreiros, eu vi – ricocheteavam nas paredes da torre transformando-se em faíscas estelares.

Era preciso tapar-lhe a boca para evitar uma hecatombe galáctica. As unhas, em forma de garras, curvas e duras, outra característica das mulheres de Harpias, dilaceravam-me o dorso, lentas e felinas, abrindo sulcos de sangue suculento que ela sugava hematófaga.

O sexo de Trê era uma cornucópia de delírios: quintuplicava orgasmos aos quintetos. Uma hora com ela valia cinco, cinco horas eram cornucopiosas.

Em duas horas de amor eu estava extenuado. Por isso não tive forças para acompanhá-la quando se foi, nem sei se deixou a torre passando pela porta ou se evolando pela escada em caracol, tresloucadamente como veio.

 

4

TETRA

Tetra apareceu na ordem que lhe cabia, minha quarta visitante.

Do signo de Beemote, que torna as mulheres românticas, chegou, torre adentro, numa carruagem puxada por um cavalo bardo que, com voz trovadoresca, declamava versos de Fernão Ferreiro:

Dormir com os olhos abertos e sal na boca,
luzir até as raias do infinito.

Em dueto, Tetra completava com voz de sonata renascentista:

Alçar todos os céus em alto grito.

Quando me dei conta, ei-los diante de mim, corcel e dama, amigo e amiga, ela sentada no banco de veludo da carruagem cujas lanternas piscavam imitando vagalumes descomunais.

Coberta de véus com as cores do espectro tinha à cabeça uma coroa de madressilvas.

Aproximou-se de mim, distinta e campestre, quase vaporosa.

Ao recebê-la, eu me lembrei que havia lido, alhures, a particularidade das mulheres do seu signo: “Eis que sua força está nos seus lombos, e o seu poder no umbigo do seu ventre”.

No momento certo pude comprovar esta verdade recôndita ao massagear-lhe o dorso e tocar a miniatura de umbigo, ante o olhar comparsa do cavalo bardo.

A reação de Tetra foi imediata: primeiro, pôs-se a gemer baixinho, afundando em si mesma, os olhos amiudados, o corpo trêmulo; depois, com imprevisto vigor, acavalou-se sobre mim e cavalgou um orgasmo que reverenciava deslumbrada, dizendo, que longo, que longo!

Quando terminou recompôs-se recatada e se erigiu coberta dos sete véus iridescentes. Com movimentos dignos entrou na carruagem, sentou-se no banco de veludo nobre e partiu na direção das campinas matinais, no país das noruegas, conduzida pelo cavalo bardo que escandia versos com voz trovadoresca.

 

 

5

QUINTA

A quinta visitante mal chegou já foi dizendo, sufoca, sufoca meu fogo, sufoca!

São assim as nascidas sob o signo das Valquírias, desvairadas e orgiásticas.

Olhei-a, frenética, os cabelos ouriçados, os olhos fulmíneos, o corpo numa auréola de chamas.

- Seu nome é Quinta – falei.

- Quinta dos Infernos é o meu nome e sobrenome – respondeu, ardente.

Num gesto inesperado sacou do meio das coxas, como quem saca um 38 num filme de faroeste, a vulva grande e ávida como ventosa, que me atirou num arremesso certeiro.

Isso está ficando grotesco, pensei, às voltas com aquela massa gelatinosa e antropofágica, que começava a me devorar por inteiro. Em vão eu lutava desesperadamente para escapar, aliás, lutava por um vão para escapar do amplexo que me trucidava.

Um odor intolerável me envolveu e ocupou a torre provocando-me vômitos incontroláveis.

- Miserável! – gritou Quinta, olhando-me da beira da cama.  - Eu te dou meu precioso sexo e tu vomitas nele – explodiu, hidrófoba.

- Não, mulher – procurei corrigir, entre espasmos – eu vomitei dele – e me safei com esforço daquela camisa de força fugindo pela escada em caracol.  

Quinta disparou no meu encalço, impetuosa, uivando como cadela agoniada.

No meio da escada parei bruscamente enquanto ela passava por mim, monstro esbaforido rumo aos quintos dos Infernos, onde era o seu lugar.

Ainda assustado, recolhi-me ao leito ouvindo ao longe seus uivos caninos e loucos como uma fera alucinada que sumisse nas trevas.

 

6

HEX

Hex bastava-se a si mesma, ou quase, pois pertencia ao signo de Odradek, de mulheres feministas e solitárias.

Mesmo assim as mulheres deste signo necessitam do cheiro do macho para atingirem o orgasmo, o que as leva a se sentirem dependentes e imperfeitas.

Eu não conhecia minha sexta visitante, não lhe sabia o nome, nunca a tinha visto.

- Como te chamas? – indaguei quando ela entrou.

- Hex – respondeu com voz de década de quarenta, quente e sensual como era a de Lauren Bacall.

- E onde moras?

- Domicílio incerto – retrucou, rindo, mas era também um riso incerto.

O diálogo acabou aí. As palavras não eram mais necessárias para preencher nossos espaços vazios.

Como as nativas de Odradek, Hex era longilínea e flexível. Sua espinha dorsal permitia-lhe acrobacias mágicas. Em movimentos lânguidos era capaz de percorrer impudicamente o setentrião e o meridião do próprio corpo, dando-se lambidelas tópicas e mordidas violáceas.

Era desse jeito que se satisfazia, entre gemidos modulados e dobrada sobre si mesma.

Minha presença ao seu lado não se resumia ao voyeurismo obsceno. Do odor da minha pele Hex recolhia, como abelha, o anelo para seu prazer solitário. Às vezes, em caprichos de lascívia, interrompia-se para lamber o corpo e, estimulada, voltava a se percorrer voluptuosa.

Confesso que me embevecia vê-la nesse onanismo requintado, consumista de si mesma.

Eu a contemplava em fascínio, sentado no chão como um Buda. Seus coleios eram o meu Nirvana – seu contorcionismo competente, sua luxúria adestrada, sua desenvolta impudicícia – à cata do prazer que tinha domicílio incerto no seu corpo longo.

(01) Relembro aqui o que escrevi para a orelha da primeira edição: Sempre me pareceu que as figuras de O livro dos seres imaginários fazem parte de um zodíaco fantástico. Esta a raiz do delírio que envolveu seres e signos extraordinários com personagens femininas alucinadas, que deram substância aos delírios da Torre. Se é que existe substância nos delírios, mesmo sendo delírios literários, nada mais do que literários. 

E sim: Quase me esqueço de dizer que pequenas alterações e mínimos acréscimos foram feitos ao texto da primeira edição, nascidos de ímpeto que não pude conter. Mas nem vale a pena dizer onde estão. 

 

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