Reynaldo Santos Neves por Reinaldo Santos Neves:
apontamentos sobre a autoficção em Sueli: romance confesso

Karina de Rezende Tavares Fleury 

 

Não sou eu o personagem de meus contos: apenas o seu autor.
Reinaldo Santos Neves

A carga de sinceridade estampada na epígrafe acima (colhida da página 106 da segunda edição de Sueli: romance confesso, [1] de Reinaldo Santos Neves) parece querer enredar o leitor a se tornar parte de um “pacto de verdade”, cuja promessa de dizer a verdade, somente a verdade parece se desfazer na fragilidade dos pronomes “eu” e “meu”, na insustentabilidade do verbo “ser” e na indecidibilidade do substantivo “autor”.

Foi por meio de Derrida, escreve Evando Nascimento, em “Matérias-primas: da autobiografia à autoficção – ou vice-versa”, que “aprendi a desconfiar de tudo o que leva o prefixo ‘auto’, de toda a carga excessiva colocada no ‘eu’, no ‘me’ e no ‘mim’, além, é claro, do nome dito próprio” (2010, p. 191- 192). A provisoriedade do sujeito está diretamente relacionada à impossibilidade da linguagem, e por sua vez, à impossibilidade da escrita de si, ou autobiográfica, responder a perguntas como: “quem sou eu?” ou “quem é esse ‘eu’ que me/nos fala?”. “Eu sou eu./ Eles são eles./ Sueli é você” (grifo nosso) determina Reinaldo numa das epígrafes de Sueli.

No entanto, “eu sou quem sou é a frase mais falsa que já se pronunciou no globo” (2008, p. 87), escreveu Nascimento em seu livro Retrato desnatural (diários 2004-2007). Isso porque o “eu”, na busca de se (re)conhecer e de ser (re)conhecido, está sempre num processo de (re)construção, de re-apresentação de si mesmo. O decadente pensamento cartesiano (“Penso, logo existo”), deu lugar ao moderno, “Je pense donc je suis” (“Penso, logo sou”), de Nietzsche, em que não há espaço para se apreender o sujeito plenamente constituído, ahistórico.

O verbo “ser” é provisório e, por isso mesmo, corrói a visão do sujeito como verdade absoluta. O sujeito se performa cada vez que diz “eu sou eu”, criando novas máscaras de um “eu” in progress.

 

A câmera move-se lentamente na direção do Teatro Carlos Gomes [...]. O tempo todo ali transeuntes transitam. Um desses euntes entra em cena, para e olha para dentro do teatro. Está de jeans, camisa Raphy com discreto quadriculado marrom e branco, lembrando remotamente um tartan escocês. Sou eu: eis-me em cena (NEVES, 1991, p. 51).

 

O autor, com ares de ator, cresce e se desenvolve assim, meio sem roteiro, meio de improviso, com a mesma naturalidade com que a narrativa apresenta as ações cotidianas vividas por ele e pelas demais personagens da trama.

A esse respeito, Elizabeth Duque-Estrada, citando Alan Sheridan, afirma que “o homem como objeto de conhecimento científico, surge quando a linguagem deixa de ser o modelo de conhecimento universal e inquestionável. Quando a linguagem se torna opaca, problemática, um objeto a ser conhecido, o homem segue o mesmo caminho” (SHERIDAN, 1980, apud DUQUE-ESTRADA, 2009, p. 25).

Nesse sentido, o solo onde se edifica Sueli: romance confesso é movediço e o limite entre realidade e ficção é embaçado.

 

Queria ter memórias dela para guardar de souvenir. Queria atravessar, ainda que suave, o curso de sua biografia. Deixar, se não uma marca, um registro: RSN esteve aqui por um momento. Queria amar Sueli simplesmente porque me parecia feita para ser amada por mim (NEVES, 1991, p. 81, grifo nosso).

 

Quem é o RSN que fez de suas memórias matéria-prima para a literatura? A coincidência nominal entre o protagonista e narrador, Reynaldo Santos Neves, e o autor da obra, Reinaldo Santos Neves (ou RSN para ambos, se preferir) é desmentida pela presença do verbo “estar”. Estamos diante de uma falácia cuja fórmula se repete em seu mais recente livro, o segundo volume de A folha de Hera (2012), conforme explica Rita de Cássia Maia e Silva Costa, no ensaio “Quando o autor se torna ficção”, publicado no Caderno Pensar, A Gazeta, do dia 10 de novembro:

 

[...] a estrutura narrativa se organiza em torno de falsas atribuições, note-se o savoir faire do romancista que, ao criar o personagem tradutor Reynaldo Santos Neves, assim com “y”, a exemplo do que fizera em Sueli (romance de 1989) desvencilha-se do labirinto de referências construído por ele, [...], evidencia que o próprio autor do romance é uma ficção. Ou seja, o escritor inventa a si mesmo como auto (COSTA, 2012, p. 7).

 

Assim, o autor de Sueli, ao contrário do que possa parecer, não apresenta uma identificação dos sujeitos autor, narrador e personagem vividos por RSN, mas, parafraseando Nascimento, uma “intertroca de papéis”: “O leitor é convocado a intertrocar papéis com todas essas máscaras ficcionais, atribuindo também algo de sua própria vida, sem o que a literatura permanece letra morta” (2010, p. 199).

Serge Doubrovsky propõe em Fils (1977) que o “termo autoficção” seja usado para indicar “o tipo de narrativa em que os nomes do autor, do narrador e do protagonista coincidem” (DOUBROVSKY, 1977, Apud NASCIMENTO, 2010, p. 191). O “auto” grafado nas páginas da “ficção” apresenta uma narrativa escrita em primeira pessoa que se produz sozinha e na frente do leitor:

 

Mas espera lá: o que é isso que você estou fazendo? Ela passa, no governo dos seus pés, e este idiota continuo andando em frente, sem desviar o curso, e o leitor dirá que sou a mesma pessoa do começo do capítulo, quando não sou. Já estou transformado. Já não está ali em mim quem estava algumas linhas atrás. Estou transtornado (NEVES, 1991, p. 143).

 

O estranhamento que experimentamos diante do (des)acordo de “você estou” nos remete à famosa frase de Rimbaud: “Je est un autre” (“Eu é um outro”), ou para melhor entendermos, o eu nada mais é que o(s) outro(s) que há em mim ficcionalizado(s).

Em Sueli, nos deparamos com dados reais, comuns para quem é capixaba: ruas, bairros, bares, empresas, pontos turísticos e pessoas de destaque, como nos fragmentos abaixo:

 

Este romance tem sua história e sabe por onde começar Mas como começar? O como começa um romance é um abracadabra: daí deriva (é minha opinião), desse toque inicial, toda a mágica do texto [...]. Assim, pra começo de romance, poesia. Tudo começou em poesia ali na praça Costa Pereira, centro de Vitória, no Teatro Carlos Gomes (NEVES,1991, p. 11, grifo nosso).

Em tudo isso a Ceia flutuando conforme a maré, para cima e para baixo. Às vezes acho interessante o que escrevo, às vezes uma merda (Ibid., p. 91, grifo nosso).

Ouço falar que ela quer me conhecer porque sou o autor da Crônica de Malemort (Ibid., p. 100, grifo nosso).

Essa amiga tem nome, mas esse nome dessa amiga de Sueli não vai constar do texto do romance. Paulo Sodré me pediu cheio de dedos, detestando interferir em obra alheia. Mas pois não: concedo. Só que o seu pedido gera um problema inédito para este romance: a invenção de um nome de personagem. Todos os que entraram em cena até agora (à exceção da moça anônima do capítulo anterior) trouxeram consigo seus próprios nomes, simplificando a minha tarefa (Ibid., p. 100, grifo nosso).

 

Essas informações estão ladeadas a outras não tão reais assim, o que pode confundir o leitor desavisado de que está preso às malhas de um jogo literário conduzido com maestria por Reinaldo Santos Neves que monta uma “estrutura labiríntica” em que “o leitor não encontra um ponto sólido para se apoiar com segurança, ou seja, dados biográficos se misturam à ficção de forma que o terreno se torna instável”, como afirma Nelson Martinelli Filho, em “As múltiplas faces do romancista” (Caderno Pensar, A Gazeta, 10/11/2012, p. 8).

 

Pensando bem, é grande o poder que Edna Teixeira detém nas alvas brancas mãos. Ficando no meio, é ela quem recebe e transmite todas as informações. Comanda todos os discursos: tem poder de revisitar e retocar os discursos originais. [...] E se tivesse resolvido dar um toque pessoal a toda informação transmitida – modificar a história de acordo com seu próprio gosto literário e sua fértil imaginação? [...] Como saber o que era ficção e o que não era [...]? (NEVES, 1991, p. 141).

 

De fato, é grande o poder da literatura, é grande o poder da ficção e não dá mesmo para saber o que é ficção e o que não é (na verdade, isso é o que menos importa na obra), porque o sujeito da escrita é resultado de uma construção que opera tanto dentro do texto ficcional quanto fora dele (na “vida mesma”).

Ainda que o autor imprima de próprio punho a sua assinatura na página em branco do romance, a título de dar fé ou garantir ou endossar sua real condição de autor, como fizera Barthes, em Roland Barthes por Roland Barthes (2003), e por Reinaldo Santos Neves, em Sueli: romance confesso, ainda não estamos nas entranhas da ficção, onde, pois, a escrita se situa no interstício entre a mentira e a confissão?

Mas Leonor Arfuch não nos deixa esquecer: “não existe coincidência entre a experiência vivencial e a totalidade artística” (ARFUCH, 2005, apud KLINGER, 2007, p. 43).

 

[...] e me dou conta, só agora, de repente, que em momento algum de todas as vezes (não muitas, é verdade) em que estivemos juntos, em nenhum instante de momento algum Sueli me chamou pelo nome, nem com i nem com y [...]. Hoje exorcizado o demônio está, e Sueli não significa mais que o nome de uma de minhas personagens femininas, que é o que ela realmente é. Para mim, agora, quem existe de verdade é esta Sueli. A outra? A outra não passa de uma ficção sem importância (NEVES, 1991, p. 169).

 

Se na articulação da escrita narcisista a assinatura do autor pressupôs um quê de veracidade ao texto, a confissão de que a Sueli não passa de mais uma de suas personagens femininas, nos mostra que é nesse espaço, em que “toda verdade sobre si mesmo deve ser considerada ficção” (Barthes), que

 

o leitor poderá integrar as diversas focalizações provenientes do registro referencial e ficcional num sistema compatível de crenças, e onde poderá jogar ‘os jogos do equívoco, as armadilhas, as máscaras, de decifrar os desdobramentos, essas perturbações da identidade [...] (ARFUCH, 2005, apud KLINGER, 2007, p. 44).

 

Esse mesmo espaço a que nos referimos acima também pode ser lido no traço grafado pelo autor interposto entre o vocativo “Sueli” e a sua assinatura. Trata-se, sem dúvida, de um lugar de representação onde cada receptor pode inserir a sua própria longa história; um lugar que não se esgota, que não se fecha em torno do que é certo ou errado, do que é sinceridade ou autenticidade.

Mas, se após todas essas reflexões o leitor ainda tiver dúvidas sobre quem foi o responsável por fazê-lo alcançar o prazer do gozo textual ao conhecer Sueli: Reynaldo Santos Neves ou Reinaldo Santos Neves, vale ouvir a voz do mestre: “Tudo isto deve ser considerado como dito por uma personagem de romance” (BARTHES, 2003, p. 11).

 

[1]Publicado em 1989, o livro Sueli: romance confesso é ambientado na cidade de Vitória - ES. Tem como enredo a história do amor platônico de Reynaldo por Sueli, uma conhecida repórter de televisão local. A coincidência dos eventos, dos lugares, dos nomes dos protagonistas, e também de nomes de algumas personalidades da sociedade capixaba, inserem o leitor na seara da autoficção.

 

Referências

BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

COSTA, Rita de Cassia Maia e Silva. Quando o autor se torna ficção. A Gazeta, Vitória, 10 novembro 2012. Caderno Pensar, p. 6- 7.

DUQUE-ESTRADA, Elizabeth Muylaert. Im/possibilidades da autobiografia. In: _____. Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si. Rio de Janeiro: NAU/Editora PUC-Rio, 2009, p. 17-58.

KLINGER, Diana. O retorno do autor ou The personal is theoretical. In: ______. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 36- 57.

MARTINELLI FILHO, Nelson. As múltiplas faces do romancista. A Gazeta, Vitória, 10 novembro 2012. Caderno Pensar, p. 8.

NASCIMENTO, Evando. Matérias-primas: da autobiografia à autoficção – ou vice-versa. In: NASCIF, Rose Mary Abrão; LAGE, Verônica Lucy Coutinho (Org.). Literatura, crítica, cultura IV: interdisciplinaridade. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010, p. 189- 207.

______. Retrato desnatural (diários 2004-2007). Rio de Janeiro: Record, 2008.

NEVES, Reinaldo Santos. Sueli: romance confesso. 2. ed. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes; Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo, 1991.

 

Este ensaio foi originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo n. 69, 2013.

 

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