Sem medo de errar, atrevo-me a dizer que Crônica do amor desperdiçado, de Pedro J. Nunes, pelo menos como leitor, é um grande exercício do existencialismo, sem nenhuma pretensão filosófica, mas um passeio no absurdo e no non sense da literatura. Como dizia Antonin Artaud, no seu livro Pesa-Nervos, “toda escrita é uma porcaria”, considerando que a literatura é muito mais aceita como tal por estar comprometida com os maneirismos esteticos do bem dizer e que, por isso, perde sua oportunidade de dar voz ao espírito dos seres inquietos de nossa cultura.
Em Crônica do amor desperdiçado, Pedro J. Nunes se utiliza do enredo como um mero pretexto para dizer do tédio, da solidão, da angústia, da ansiedade e da busca por algo intangível, onde a possibilidade, a todo tempo, esbarra na impossibilidade. E é assim que seu personagem/narrador sobrevive. O narrador onisciente tem uma vontade, o que está em potência num ser humano que não sabe ao que veio no mundo, mas na impossilidade de realizá-la por completo, recorre ao desejo que é uma artimanha socialmente contruída e limitada à sua condição de humano, ou demasiado humano, como diria Nietzsche.
Daí, Nunes desenvolve a ideia de que a possibilidade, a todo tempo, tem como fronteira a impossibilidade, considerando que a realização do desejo do personagem seria a sua própria morte, tendo em vista que realizar um desejo seria a comprovação de que não haveria mais motivo para viver. Realizar o desejo seria chegar à conclusão de que não há mais nada a fazer, porque a realização do desejo seria entender que ela não dá conta daquilo que foi desejado, principalmente, quando resultado da imaginação. Para Fernando Arrabal, a imaginação é a arte de organizar as memórias, considerando que a vida é memória e o homem o acaso e, para Jean-Paul Sartre, a imaginação tem o poder de fazer com que o imaginado seja mais real do que a realidade.
A imaginação, no caso de Crônica do amor desperdiçado, de Pedro J. Nunes, é a condiççao de seus personagens tolerarem a existência. Eles não têm nomes. São Eu e Tu que poderiam se desdobrar numa junção do Nós. Mas Eu e Tu também podem serem vistos como Tu e Eu, numa inversão de protagonismos, pois se assemelham a um conflito interno da existência. A construção de um Nós é uma vã tentativa da ficção. O Nós se desdobra em nós, talvez como os da cana que separam os gomos. Cada um é um em si mesmo e não passa de uma porteira intransponível. Nesse caso, os nós independentes viram bagaços antes mesmo de serem chupados.
Em Crônica do amor desperdiçado, Nunes coloca a vida como uma corda tensa, esticada, amarrada em dois pontos, a saber: o nascimento e a morte. E tudo o mais não passa de uma tentativa de inventar motivos ou provocações para preencher o intervalo. E nesse sentido, coloca em xeque o amor como a impossibilidade de domesticar as paixões humanas, um pouco como Arturo Ripstein em Vermelho Sangue (Profundo carmesi, México/França/Espanha, 1996). Amor? Sim! O amor politicamente preconizado e como a sociedade o compreende e aceita: uma solidão a dois, um egoísmo ampliado, onde a moral e o imoral se confundem numa amoralidade. Porque a moralidade do cotidiano é imposta pela mesma sociedade que a combate. Ela a combate quando perde o controle, quando a imposição das mesmas forças cívicas concretiza de fato as suas fantasias no imundo, “fora do mundo”. É como a igreja permitir a viagem de Colombo acreditando que este vá morrer na metade do caminho, é como incentivar o homem a voar apostando em sua queda, para que ele não possa voltar do céu dizendo que não viu Deus.
A beleza também de Crônica do amor desperdiçado, de Pedro J. Nunes, está no passeio pela literatura através de Sartre, Buarque de Holanda, Poe, Pound e tantos outros, inclusive, de Dostoiévski, com o qual nos brinda com um belíssimo ensaio no final da obra.
Ler Crônica do amor desperdiçado, de Pedro J. Nunes, é experimentar a literatura a partir da linguagem como personagem. É entrar numa floresta onde a fauna e a flora necessitam de outras nomenclaturas, colocando de fora tudo o que até agora temos nomeado com termos latinos e alheios ao passeio no inusitado.