Mecanismos precários

Herbert Farias

 

Máquina testemunhal: Artifício dos olhos

 

Dois números e duas ausências na falência da noite

Era um pastel lubrificado de gordura, buscado com sofreguidão pelo passageiro sonolento descido ou despejado de um ônibus da linha 805. Havia fome e o homem da barraca era o lobo do homem. Pediu a iguaria regada a colesterol, e um guaraná detergente para lavar a gastrocâmara.

A noite tinha nada de inédita, repetida em todo o seu cansaço. Amalgamava os sentidos com a mesma posição das estrelas. Trazia o balcão mais para perto e sufocava o homem da barraca. As pálpebras caíam pesadamente, mas era preciso defender a prole dos que saíam sem pagar. Descia um dejeto bárbaro pelo último ou penúltimo carro da mal afamada linha 805.

Um esqueceu o óbolo que devia pela comida devorada. O outro insistiu em ver na ausência de espírito a inspiração para um golpe. E como o comensal atravessasse a rua sem pressa, olvidado o preço não pago, tal caminhada serena soou como insulto pior que a corrida desimpedida. Pelo que cinco dedos mercantes se crisparam em torno do trinta e oito velho de desuso.

Quando a manhã desfez a contragosto a longa caverna de estrelas, havia um corpo temperado com massa abundante de pseudotomate, e uma barraca deserta interpelada pelo vento.

 

Precário

Ele arrasta os muitos quilos por sobre uma escadinha decrépita, sobe os degraus rangentes até o quartinho empoeirado e despeja seus passos no quarto, lançando um olhar de desdém sobre as contas que alguém atirou por baixo da porta. Chega a pisar nelas. A pasta vai parar num sofá fora de moda que ele não sabe até hoje como conseguiu comprar.

O banheiro tem uma lampadinha que parece uma ideia muito vaga do mundo que ele jamais compreendeu. O chão é de ladrilhos lisos, ele abre o chuveiro e exerce seu instante de liberdade. Dança e canta como quem nem se dá conta do próprio ridículo, pula e rodopia apesar do chão ensaboado e da indiferença de todos os vizinhos, caso ele caia, sangre e morra.

O gordo em sua dança perigosa, mentirosa como se imitasse o glamouroso canto na chuva de Gene Kelly, é um fato precário da vida. Um dedo na cara das probabilidades, uma bicicleta esbanjando piruetas no corrimão da ponte mais alta. Se a vida trancafiada se abrisse a outros olhos, como uma vitrine, e todo banho fosse registrado como metáfora da vida inteira, a plateia olharia para baixo e perceberia que equilibra o peso de cada corpanzil sobre lápis de ponta afiada.

 

Bagagem comentada

Eu finjo que as coisas me obcecam. E caminho, um pé diante do outro, meses entre um e outro passo. Ele alisava a mochila como se fosse um cachorro, ou um filho morto. Era de se passar adiante para não ver o brilho saudoso na contemplação dos passados. Passavam carros e bicicletas na rua pecaminosa de todos os dias e vontades, velocidades e rumos. Certos ditos desacreditavam-se na boca dos passantes, alguma esperança morta de quem não mais chegará. E ele somente acariciava a mochila como se dentro houvesse a cabeça de um ente querido, um gato talvez. A mochila surrada de fugitivo das lembranças. Sorriso trancado no olhar perdido, como quem não crê por tempo suficiente. Em volta o comércio abria as portas lentamente, na manhã de segunda, como de um dia que não conhece festa, uma definitiva crosta de acidez governava o dia. Era o cinza dos caminhantes, e ele se deixou ficar com sua mochila dócil e rota na porta do armarinho ainda fechado. Passou uma mulher secundária, e lhe lançou um olhar de somenos atenção, ela própria cenário que ninguém notava. Um cão indiferente mordeu o ar num latido vazio, abocanhando a cena em poucos centímetros, mergulhado no seu papel de cão até as últimas consequências do personagem. Mas não era um cão que habitava a mochila do andarilho, ora sentado na porta fechada de um armarinho, que fosse uma farmácia, padaria não era, as padarias abrem cedo para enxotar os passantes que se deixam ficar. Crescei e multiplicai-vos, mas passai adiante, que aqui se alimenta o vivente, e vai. Com a virulência de quem não viverá se não gritar, um bêbado rechaça a atmosfera matinal, com uivos de presença, golpes de humor grosseiro, não lhe darão ouvidos se não fizer da rua seu auditório, antes que um cansaço maciço o curve na marquise dos ventos, o sol mordente dos verões e a chuva lavando a pele nas crises, uma voz na cilada das esquinas, que o ouçam os abortados fetos que ainda pensam pagar as dívidas. A mochila do homem sentado na porta comercial é preta, de um pretume desafiado e vencido pela poeira da rua de todos os dias. Desarranja-se em vigores de descostura, mas a vida é mesmo assim, com trechos desalinhados, desalinhavados na estreiteza vacilante do parco entendimento. E nem faltam ao caminhante sentado os brios de ousar ponderar a jornada, ele que de tanta razão se desfez em desatinos, e hoje aninha a mochila nos braços que outrora tiveram um filho para ninar, ou quem sabe o ninasse o filho, desde há muito a ordem das coisas permanecia num trocadilho indistinto. Trafegam diante dos olhos os ônibus escolares, as mercadorias acenam nas janelas e se insultam, brandindo as cartolinas e as vozes. Carros infestam a rua e os ouvidos, dentro de uns ocorrem crianças e velhos, a manhã destruiu o sonho dos fantasmas e pacientemente vai erguendo os andares de outro dia de tédio e sol. Na mochila preta e gasta cabem todos os dias do filho morto pelo carro veloz e habitado pelos vivos. Surgiram condolências, mas o tempo cuidou de tripudiar sobre os sujeitos. Não há mais ninguém além dos espantalhos rasos de cada nascer de sol, lutando por espaço na embocadura do presente. Chegam os vendedores do armarinho para abrir a loja, desaparece o remanso das lembranças, varre-se a porta com a expulsão funcional dos olhares, o homem atravessa a rua com a mochila, abre-lhe as entranhas, alimenta as entrelinhas com o conteúdo oco, mergulha cada vez mais numa alegria doméstica e pretérita, encoberta por uma parede na terceira rua à esquerda.

 

Invisível

A multinacional Geobehavior escolheu Ivo para um estudo de comportamento. Precisava esmiuçar a conduta íntima de um homem comum. Espalhou detetives para observarem o rapaz nos mais comezinhos afazeres. E onde os homens e mulheres da Geobehavior não o podiam vigiar, as câmeras e microfones de diversos tipos o faziam.

Ivo nunca se soube espreitado, mas por ser muito vaidoso, cheio de si, tinha como certo que em toda parte o admiravam: seu charme, beleza, inteligência e força, o melhor da humanidade em cada gesto, olhar ou palavra que ele exercia. Onde não enxergava admiradores, Ivo os criava para seu deleite e presunção.

A Geobehavior jamais conseguiu seu intento. Nunca alcançou a intimidade de Ivo, pois apesar de este desconhecer a tocaia, sempre se julgou notável, um portento, astro de seu próprio filme vazio. Ninguém o podia enxergar porque ele mesmo, havia muito, não estava mais lá.

 

O piquenique

Já não dorme. O travesseiro é de madeira envernizada com lágrimas. Sua perda é do tamanho de meia cama. Você se levanta espaçosamente na casa que seria menos deserta se você não estivesse nela. Sua perda é do tamanho de um vaivém de cômodos. Você sobe ao terraço como quem se certifica da quantidade de degraus. Você toma consciência do perímetro excessivo da construção, antes de chegar ao corrimão que dá para a rua e aspirar a própria rua imbecil de tantas idas e vindas. Você expulsaria a noite se pudesse, mas ela sempre volta com as velhas piadas sem graça. Sua perda é do tamanho de um chiste bêbado e noturno e você tenta trazer seu sono de volta, seu sono nominal e intransferível como uma obrigação num contrato. Você tenta trazê-lo de volta apontando os olhos molhados para as estrelas e contando-as como se fossem carneiros azuis e sem lã para aquecer. Carneiros pelados tiritantes de frio, do seu próprio frio nominal e intransferível. É inútil, o sono não vem porque você sempre intercala a contagem com considerações passionais sobre o que teria feito de errado, sem contudo considerar nada do que fez errado. Você se repete de novo, um devaneio que se vinga do tempo que lhe roubaram, com um bilhete cheio de erros rabiscado no verso da foto mal tirada do casal debaixo da laranjeira frutífera. Sua perda é sem flash e não tem luz suficiente para dourar as laranjas. Sim, você trouxe a foto, você sempre traz a foto quando sobe ao terraço, como se ela fosse um tapete mágico por sobre a noite que nunca foi criança. Zeros estatísticos continuam a lhe cair dos olhos quando você lembra o que quase deu certo e você agarra a foto, com medo de ela cair no asfalto lá embaixo, numa vertigem que é fraqueza mas também é um início de reação. Depois o sono vem voltando aos poucos, e antes que ele tome o que é seu, você desce a escada com os olhos arregalados pelo medo de errar um degrau. Invade o quarto de sempre como se ele fosse de outra pessoa. O corpo adulto dorme pesadamente um sono sem suspeitas. Você jamais o perdeu, afinal. Sempre esteve ao alcance de um tapa ou um palavrão, porém nunca mais sorriu como no dia do piquenique, debaixo da laranjeira frondosa como uma árvore mítica. A árvore que você desdenhou no dia do piquenique porque era a opção mais barata, indigna de quem tinha direitos, ora essa, que tal cartões de crédito, que tal viagens ao exterior, que tal qualquer coisa em vez desse mundinho que se esgota quando se dá dez passos? Uma laranja dançou pendurada ao seu alcance, acessível demais para valer alguma coisa. Não há nada daquele momento agora, senão a foto que você segura como um talismã quente, suspenso entre o passado e o futuro, e você sabe que seu tempo não chegará, porque nenhum dos seus momentos lhe pertence.

 

Intercâmbio

Já é ruim quando o médico se atrasa e eu tenho que esperar desamparado pelo tédio, contando, se possível fosse, as voltas impacientes do ventilador de teto. Mas é ainda pior se do meu lado senta-se Elza Mirante e seu indiscutível mau gosto para assuntos.

É frequente ela discorrer astuta e sorrateiramente sobre a meia-calça de dona Madeixa, de rosto coberto por umas tranças grisalhas merecidamente ridículas, que nunca ouve ou parece ouvir o comentário maldoso da outra. Acontece outras vezes que Elza, sem fitar ou escolher interlocutor, recebe a incumbência, sabe-se lá de que lamentável impulso, de explicar ao espaço vago diante dos seus olhos a importância de se preferir papel-toalha de primeira linha aos reciclados de última hora nos banheiros públicos.

Mas o evento que mais se assemelha a catástrofe no insosso e monótono discurso de Elza, e que me faz pensar em homicídio sanguinolentamente requintado, é a ocorrência de Arnoldo. O leitor apressado poderia me taxar de ciumento, e concluir que o objeto de minha raiva atravessara, em algum ponto menos guarnecido, a divisa entre a raiva e algo mais lírico. Livre-se tal leitor desse veredito. Antes envio em devaneio ambos, Arnoldo e Elza, ao diabo que os trague, e que decerto os vomitará mais tarde. Pois o tal da tal não cessa de percorrer meandros e desfiladeiros, e ora procura Elza na casa da mãe dela, ora desfila diante dela com outra de menos idade, e some e aparece na fala ensebada da mulher, seja viajando a Recife sem dizer eu te amo, seja amansando cão bravo no quintal da namorada para entrar em surdina pela janela, e desde a compra de uma bijuteria rala vergonhosa com que enganara a tagarela até o telefonema suspeito a uma gringa de madrugada.

Dado o proverbial atraso dos médicos nesta terra, das duas uma: acostumo-me à fala medonha de Elza ou passo a chegar mais tarde à nauseante sala de espera. Esta última solução traz o inconveniente de me fazer passar mais tempo no escritório, onde Arnoldo, meu colega da mesa vizinha, não pára de ruminar entre memorandos as mesmas saga e praga lançadas sobre Elza e todas as mulheres do mundo.

 

Felício e Antunes no parapeito do destino

Gemia o orçamento. Felício esbarrou no guichê e atacou com ânimo a ração mensal tão pouco previdente. Retirou do templo numérico a barcaça-corpo indisposta ao ar condicionado. O negrume na vista era prenúncio de enxaqueca. Invadiu o coletivo como se pagasse passagem. A bolsa a tiracolo convidava a rapina de vizinhos cães.

Por Antunes já ninguém chama, nem chamava. Antes a etiqueta com nome de recruta, agora o apelido na ficha escrivã. Esquiva-se bem do populacho que não o aplaude. Serve-se da porta, que o motorista não atende gritos de roubados. Antunes – Deus o tenha onde couber – traz na mão direita o troféu importado. Reside agora diante dos assentos especiais, de onde contempla, visionário, o leste promissor de uma mina a tiracolo.

Bendito é o fruto. Felício esbarrou o olho amortecido no ladrão cortejador. O filho que não lhe pedia a bênção, antes a tomaria de assalto, se pudesse. Mas já não poderia. A disposição caiu depois da visão da coronha, sob a jaqueta que deslizou, paterna. O súbito reconhecimento preparou as fachadas. A mãe está doente, vive chamando o senhor. Depois da rinha de galo eu passo lá.

 

Pequenos astros

Durante o sono de quase todos, Márcio sempre pulava a janela, disparava em direção à lavoura, escolhia a árvore no grande laranjal, e a laranja para saborear de madrugada. Não que seu pai lhe negasse laranjas durante o dia, mas é que de noite, especialmente nas noites estreladas que aconteciam por ali, a laranja tinha um certo sabor, algo especial. Chupar laranja olhando o Cruzeiro do Sul era como mascar uma daquelas luzes distantes, que só podiam ter sabor de fruta ácida, de sumo amarelo, mesmo as estrelas mais azuis. Não havia muito tempo seu tio Xerxes lhe falara das galáxias, de como elas eram enormes, brilhantes, e de como se encontravam. Ele lhe disse que num encontro entre galáxias uma estrela podia nem passar perto da outra, porque a distância entre elas era muito, muito grande, muito maior do que parecia ao menino, contemplando os frutos brilhantes lá em cima.

Já os homens, sabia Márcio, embora não tão grandes e não tão distantes, podiam se machucar muito caso se encontrassem. Não foram poucas as vezes em que Márcio ouvira de seu pai que não chegasse perto da fronteira entre suas terras e as do Coronel Bertoldo. Os jagunços armados do coronel podiam ser vistos de longe, toda vez que acendiam seus cigarros de palha, minúsculos astros na solidão pequena das fazendas. Podiam ser vistos de perto agora por Márcio, que meio oculto pelas últimas fileiras de laranjeiras, olhava ora para as estrelas, ora para as duas cercas (cada uma erguida por um fazendeiro, indisposto a confiar no limite do vizinho) com cerca de dez metros entre uma e outra, que separavam as duas propriedades. Coronel Bertoldo era ladrão de terras, segundo o pai de Márcio, e ainda não tinha tomado as suas por causa dos guardas armados do lado de cá. Os de lá eram jagunços, os de cá eram guardas. Márcio nunca entendera bem por que os homens davam vários nomes para a mesma coisa. Naquele momento, os tais guardas, pelo menos os daquele lado da fazenda de seu pai, o lado mais afastado da sede, estavam juntos investigando uma fogueira que o menino acendera exatamente para atraí-los, como os heróis faziam no cinema. No fundo de seu coração de menino, era preciso apenas uma pequena coisa, para que inimigos se tornassem amigos. Seria essa noite mesmo que se entenderiam os dois homens sisudos, e parariam de chamar um ao outro de ladrão.

Os homens de Coronel Bertoldo eram irados, sozinhos em suas estrelas de pitar ao vento. Tinham ordem de atirar em qualquer um que atravessasse a cerca do outro lado, fosse quem fosse. Mas bastaria que conhecessem a fruta que o pai de Márcio plantava em toda a extensão da fazenda, que todos pudessem compartilhar aquele achado tão simples, que a ilusão do menino e sua íntima gratidão transformavam em tesouro, para que estivessem todos, de ambos os lados, no mesmo churrasco de fim de colheita. Em poucos minutos ele subiu na árvore em que estivera encostado, tirou dali cinco laranjas escolhidas, uma para cada guarda ou jagunço que conseguia ver do lado de lá. Uma para cada fruta daquele Cruzeiro do Sul que ele aprendera a amar ao longo de poucos anos. Tinha que ser rápido. Logo os guardas do seu pai voltariam a seus postos. Enrolou as laranjas na camisa, especialmente comprida para aquela noite, e atravessou rapidamente as últimas fileiras de laranjeiras até a cerca de sua herança, bem no instante em que ouviu as vozes de Perácio e Bruno, dois dos mais antigos e respeitados atiradores de seu pai.

Pulou a cerca como os cometas de que também lhe falou seu tio, atraindo de imediato a atenção dos homens do outro lado, que correram para se juntar num único ponto e enfrentar a ameaça. Márcio sabia que ouviria seus gritos mandando-o parar, ameaçando atirar. Bem rápido, como no cinema. Percebeu os atiradores de seu pai tomando posição, ameaçando revidar o fogo, todo mundo engatilhando as repetições, escolhendo os alvos, mirando. Márcio estava diante do seu encontro de galáxias, provava o sabor da paz entre os primeiros ruídos da guerra, como se degustasse fruta nova, muito desejada, mas de sabor desconhecido. Chegou à segunda cerca e ouviu os primeiros tiros, sem saber a direção das balas, naquela dança dos astros menores sem luz nem majestade. Mesmo então ele sabia que ganhara o mundo inteiro.

 

Os espanadores de agulhas

Gilberto juntou-se silenciosamente aos outros espanadores de agulhas. A linha de montagem era a única coisa que os unira, então não ficava bem dar bom dia a Nestor, Romualdo, Edilson e outros poluentes, como se fossem irmãos. Gilberto trazia seu espanador sempre bem conservado. O contato destruidor com as agulhas sempre desfiava as cerdas e marcava o suporte e o cabo, mas ele preservava o mais possível sua ferramenta de trabalho. Não era desleixado como os outros homens, roubadores, imorais, publicanos de nascença.

As agulhas ficavam sempre na parede sul, com as pontas voltadas para o público, e eram traiçoeiras, pensava Gilberto, com o orgulho heróico de um pescador que volta da onda mortal. Tinha nas mãos as marcas das muitas vezes em que não conseguira manter a distância. Ele não sabia para que servia uma parede repleta de agulhas estáticas, sem contato com outras peças e escondida de todos no lado sul da fábrica, onde ninguém ia, a não ser o pessoal da limpeza, sacudir a poeira que tanta agudeza era capaz de juntar.

O fato é que as limpava, da melhor maneira que podia, e não admitia que ninguém invadisse seu setor, alegando ajudá-lo na tarefa. Tinha seu mérito. Que o deixassem em paz. O encarregado da limpeza conferia o trabalho e não dizia nada, mas assentia com a cabeça quando o serviço estava bem feito. Apontava para pontos aleatórios quando decidia que mais poeira deveria sucumbir. Raramente era o setor de Gilberto. Quando Edílson, Romualdo ou Nestor recebiam seus próprios setores de presente para espanar de novo, Gilberto sorria intimamente, calcando-os aos pés.

Na semana passada, decidiram desmontar a parede de agulhas. Assim como ninguém jamais soube para que existia, ninguém soube para que deixaria de existir. Gilberto, engolindo lágrimas prateadas, tentou levar algumas das agulhas para casa, seu souvenir. O encarregado mediu-o em silêncio, negando. Mas até o fim da vida, da cama insone da aposentadoria, sempre se ergueu perfurado e mudo para os dias de poeira.

 

Pistas

De volta do amplo quintal, depositou a pá, abriu o armário do banheiro e deu com duas escovas de dentes, e não só a sua. Ia nervosamente deitar fora a excedente, quando sentiu como se lhe saltasse em cima uma aranha venenosa: é que também deixara no armário, desleixado, o frasco de cianureto. Onde a tampa? Morte sutil, divagava, preferida horas antes. Coisa segura. Lenta, no entanto. Antes a pistola automática. As voltas, as voltas que a cabeça dá.

Deu meia volta e procurou no restante da casa mais indícios da presença alheia subtraída às pressas. Em meio a crescente terror, o frasco tremente numa das mãos, amealhou com punhados de passos trêmulos uma calça amarelo-cadáver sobre a mesa da cozinha, uma jaqueta jeans gritante de caveiras metaleiras que pareciam perecer no quarto, e um par de saltos altos e dourados, dedicados à eterna espera de visitas na sala, que jamais vinham. Manter longe os vizinhos. É preciso pensar em tudo. Mas essa roupa, por exemplo, espalhada pela casa, no afã de se livrar do corpo... os giros que a cabeça dá. Sentada na cadeira em frente, a voz balbuciou, sonâmbula:

- Saudades minhas?

Os giros que a cabeça dá. Quando a polícia chegou, ele ainda atirava, pente após pente, contra a cadeira vazia. Homem de nenhum amigo, pelo depoimento dos vizinhos. Mas não foi isso que o condenou a trinta anos, foi o cianureto derramado nas roupas da vítima.

 

Terra firme

De onde estou posso vê-lo, murmurando uma canção de acordes molhados, sentado numa varanda onde ainda estão meus brinquedos. Posso ver seus olhos fixos em algum lugar do mundo, tentando encontrar rostos em quem se ver, e dizer algum gracejo já esperado, que decerto envolveria como um abraço. Meu pai sempre abraçou com braços longos, como se abraçasse em cada filho toda a prole, que, segundo supunha, não lhe seria mesquinha. Nenhuma certeza cinzenta poderia afastá-lo da varanda paciente, onde ele esperava a volta dos filhos vindos da cidade ainda por conquistar, da terra cheia de tesouros que o fariam cada vez mais rei. Uma ironia para o velho, que nunca compartilhou da cupidez dos vizinhos, da sua gana de remover cercas e cuspir nos limites ancestrais. Chegava mesmo a repreender a ousadia dos filhos de vingar essas manobras noturnas. No entanto, queríamos mais do que o chão arado, queríamos povos e obeliscos com nossos nomes.

Foi de lá, de nossa pátria modesta, num domingo solene, pouco depois de uma história de descobrimentos, que zarpamos, meus irmãos e eu, para colonizar alguma praia para além daquele sertão, dominar sobre alguma terra que nos restou, na memória tenaz. Sob um coro de despedidas e bênçãos, vimos afastar-se o gradil embandeirado da varanda, a bordo das naus que só existiam na nossa crença. Em vez de bússola, um norte ingênuo, uma agulha ondulante, que todos os pontos cardeais eram propícios. Líamos no sol e nas estrelas apenas a felicidade que nos era devida.

As cidades, no entanto, repeliram-nos uma após outra. De suas muralhas zombeteiras, eram desferidos golpes calculados contra nosso orgulho de herdeiros. Tantos afazeres e cansaço nas trincheiras nos fizeram perder o contato fraterno. Os rostos distantes lutavam por se agarrarem, náufragos, à lembrança, enquanto o pão era disputado por fôlegos exaustos.

Muito tempo se passou até que pudéssemos firmar uma possessão em alguma parte, mesmo um quintal, que fizesse lembrar em miniatura a lavoura que nos descansara a vista e o coração, naquela varanda dos primeiros anos, distante como uma vida fora de nós. Nossos filhos emergiram do barro já com os olhos afeitos à terra pequena. Nenhum deles ousava pedir ao pai um bem maior que a própria roupa de domingo. Enquanto dormiam, pendentes das redes na varanda e dos seus próprios sonhos de conquista, recebi a visita maciça de todos os meus irmãos. Já lhes ia sorrir, quando notei o peso de cada semblante sob as notícias da velha terra. Línguas velozes davam conta da pouca energia que sobrava ao patriarca que não víramos durante tanto tempo. Era preciso levar-lhe a prole espargida pelo mundo para os últimos abraços e bênçãos.

A curva da estrada se afasta, por muita insistência de pegadas numerosas. De onde estou, eu o vejo sentado na varanda indelével de nossa herança. Ele tem o mesmo olhar de quimeras que sonda, em parte a estrada, em parte a memória, como quem sabe o fim de cada história contada. É domingo, ele usa a roupa solene que sempre o fez rei aos nossos olhos. Ele tem braços para uma descendência inteira de sonhadores.

 

A fera

Quando a noite desceu, já éramos muitos. Uma quantidade tranquilizadora de nós, na escuridão. A fera estava isolada, acuada. Mesmo que ferisse um de nós, a maioria lhe daria ao menos um golpe cada um. Apesar disso, não éramos cada um. A inimizade da fera nos amalgamava numa parede, éramos uma corrente, uma massa indistinta. Éramos diferentes dela, e isso nos tornava iguais. Só depois da sua morte voltaríamos a ser advogados, professores, pais extremados.

Gastávamos nosso tempo de espera pensando em como matá-la com eficácia, como se um modo de morrer a tornasse mais morta que os outros. Matá-la ao fio da espada seria poético, mas ninguém queria ficar face a face com ela. Sentir seu hálito era algo blasfemo. Era preciso esmagá-la, depois torrá-la, extirpar sua cabeça para exibir nas aldeias próximas.

A fera devorava as colheitas. A fera violava as mulheres. A fera atentava contra as crianças. Difícil nadar na piscina dos dejetos e não encontrar algo deixado por ela.

Mas anoiteceu e todos os gatos ficaram pardos. Nós, mais que ela. Encontramo-la, ferimos a sua pele, incrustamos nosso nome comum em sua couraça indigna. Depois demos as costas rapidamente, para voltarmos a nossas virtudes de brinquedo. E mais ligeiro se foi quem menos queria ver de perto o rosto da fera, e sentir cortada a própria jugular.

 

O passageiro

O sol se cravava como uma lança por trás da última paisagem do dia, como se invejasse o pequeno caixão conduzido por quatro ou cinco manchas semivivas. Mais tarde, já um tanto aluada pela estupidez da falta, a mãe de Maria diria às velhas carolas que o sol daquele dia se punha mais rápido em homenagem a sua filha. Era um fato que Maria sempre amou a claridade, a quentura daquela terra seca, destemperada como sua alegria de oito anos de idade. Pelo que lembro, quando o cortejo sumiu na curvatura da terra, foi como se levasse junto um sol que me faltaria.

O mundo passou a ser uma noite sem sono. Meus pés exaustos daquela terra de pestes ensaiaram uns passos de pouca vontade para a parada dos trens ocasionais que, ao contrário de mim, pareciam saber bem aonde ir. Havia um alívio discreto no único banco de espera, toscamente abrigado por telhas de barro. Certamente o alívio da sua distância do cemitério. Foi ali que tentei equilibrar as cruzes mortuárias das lápides com as linhas paralelas dos trilhos, que se não ofereciam, com seu rumo terreno, a ressurreição, ao menos faziam supor uma terra sem a peste.

Embarquei num dos carros gastos e esperei, numa vigília irreparável, que ele me trouxesse a esta estação deserta. Contudo, a certeza do rumo era o mais ausente dos meus atributos, e eu passei tanto tempo diante da janela do vagão, contemplando, em meio ao pôr do sol, aquela paisagem se movendo para trás – com uma pressa que, aliás, eu não tinha – que quando cheguei aqui, o chão, as árvores, o céu e tudo mais parecia se contorcer no sentido contrário, de modo que muito do óbvio ainda pergunto, a fim de construir meu mapa.

Um vento gelado impregnava a carne, enquanto o amanhecer de um dia qualquer não vinha aquecer os bancos áridos da estação. Mais do que um vento de mover folhas, no entanto, o que soprava era a consciência desses anos músicos, que assobiam a fanática gana do tempo em deitar sepultos os filhos da terra. Quando eles movem calendários, páginas de diários, endereços e certidões, trazem nas suas vagas flagelos e choques. É inútil querer subsistir à sua dança, ao seu canto devorador, agarrar-se a algo que pareça sólido. Eles encobrem os ventres de todos com uma mortalha de vento frio, toda vez que falta pouco, toda vez que já passou tempo demais. E eles decretaram, em sua indecifrável tábua de cálculo, que oito anos na companhia de Maria tinham sido suficientes. Sua enormidade permitia, no entanto, que eu desferisse meus golpes irados e inúteis contra a falta de Maria, sem castigar-me, sem cortar-me as palavras com golpes de destino abrupto. Era-me permitido viver com dor, era concedido que eu ofendesse os ares com a arrogância do meu choro ruidoso. Um coração assim cheio de nuances de azedume, repleto do vazio de Maria e da arbitrariedade dos tolos, mais cedo ou mais tarde arremessa o corpo no sono mais viscoso, impossível de se evitar. A lucidez desse sono finalmente me chegou com uma suavidade segura, recuperando um território legítimo. Dormi sentado no banco da estação deserta, ainda tragado pela noite fria, mas apaziguado com o tempo por uma esperança que cedo ou tarde traria um aroma de consolo depois do torpor da peste, e da companhia da morte. Quando acordei, era dia de sol alto, e uma agitação de passageiros num transe ansioso me recebeu em vigília. Custei a levantar daquele catre de uma noite sem sonhos. O corpo doía inteiro, ao menos para dizer que não estava gangrenado.

Ensaiei uns passos pela estação sem paz. Os rostos teriam me divertido em outros tempos, mas ainda não era lícito rir. Galgando espaço na procissão desenfreada dos passantes, um homem marchava sobre tocos de pernas, como num exercício de penitência. Vendia chicletes, mais com seu rosto de mártir devastado do que propriamente movendo os lábios. Calculei que o sabor fosse de ervas amargas e trouxesse náuseas a quem se servisse, mas o homem dizia a todos Deus lhe pague. Uma menina lhe dava a mão, o olhar cavando o chão imundo da estação, parecendo mais sozinha do que se não tivesse ninguém. Estranhamente, o tamanho das duas figuras dava uma impressão de uma mãe e seu filho. Aproximei-me dos dois e pedi uns chicletes, muito mais para tentar dizer algo que não ficasse contido apenas na memória moída. A menina parecia um pouco mais velha do que Maria, e muito mais triste. Eu quis lhe dizer que seu tempo chegaria, e que ela sorrisse, uma carranca falsa que fosse, para adestrar o rosto, mesmo que tivesse de carregar o pai aleijado nas costas, mas só consegui murmurar um amém aos bons votos do homem. Quando se distanciaram, recomecei meus passos sem apetite, chegando aos limites da estação. Agora a cidade me aguarda do outro lado da rua, mascando seus habitantes e cuspindo-lhes as buchas sem sabor numa lixeira comum. Verifico em meu corpo de caçador vestígios da peste, sem os achar. Vou atravessar a rua, com um princípio de pressa ridícula, evitando o peso dos ônibus e caminhões. Mergulharei no petróleo e no concreto, tentando esconder Maria numa gruta distante onde não a possa encontrar. Uma segunda pele, dura e feia, vai encobrir com um riso raro e dois olhos secos os segredos da viagem.

 

Sala de troféus

Entrou ensandecido na sala, escancarando a porta. Não havia janelas, só as câmeras do circuito interno de tevê e um elegante relógio de parede. Avançou para as prateleiras onde estavam todos os troféus de uma história de glórias. O primeiro a cair em pedaços no chão foi o Prêmio Barata de Conformidade com o Meio. Em seguida, foi a vez da Taça Proteladores do Pior, recém-conquistada. Caíram também, não pela ordem, o Troféu Casuístico de Aritmética Subjetiva, a Distinção Pela Melhor Nota em Teoria do Sexo, todas as medalhas da Ordem dos Sapateadores de Meias e de Honra ao Mérito Casual. Desfragmentados todos os Cetros de Prefeito Por Um Dia da Prefeitura Municipal de Santo Adail do Pau-de-Sebo, bem como os dezoito Obeliscos de Chumbo da Comunidade dos Desprovidos de Pendiburanga do Oeste. Nada sobreviveu, nem mesmo a coleção de Carrapatos de Ouro do concurso O Cão Mais Limpo da Rádio Bandalheira AM. Nem as menções honrosas de Goleiro Menos Vazado em Futebol de Botão do Torneio Esporádico de Matagal das Sete Mulas.

Quando consumou o estrago, gritou a plenos pulmões que conseguira, estava liberto do maldito impulso de querer ser o melhor em algo, não importava o quê. Teria conseguido se não olhasse para o relógio de parede, e para as câmeras do circuito de tevê. Eles lhe deram a ideia mesquinha: ninguém promove tamanha destruição sozinho em tão pouco tempo. Apanhou o disco com as imagens, foi correndo divulgar o feito.

 

O convidado

Receberam o convidado com toda a cortesia, mas uma restrição abalava-lhes o ânimo: era o tal do tipo que preenchia o tempo contando intermináveis histórias, aborrecidas como a sua fala arrastada. Acorrentava a narrativa e o ouvinte a detalhes sem importância. Repetia a mesma frase como se a ecoasse. Expulsava da sala o deleite de ouvir. Era doloroso, no meio do conto, ouvi-lo descrever uma árvore com tanto apego à raiz que pouca paciência e disposição sobravam para o tronco, e nunca se chegava às folhas.

Lá foi ele contar sua história sofrivelmente longa, e não houve no dia seguinte quem se lembrasse do assunto. Porque era uma vez um homem, uma mulher, uma família inteira a dormir na sala, todos sentados em poltronas cujos pés se apoiavam com exatidão no tapete retangular, que deveria medir aproximadamente dois por três metros, tendo em volta franjas douradas e ostentando, no meio, as formas geométricas mais variadas, distinguindo-se um quadrado, um círculo e um triângulo, e o tal tapete tinha uma espessura considerável, e era de cores determinantes como o vermelho-caqui e o azul-cobalto, e que...

 

Ítaca, único dono

Anda-se pela casa de Ulisses ora aos saltos, catapultando-se por cima das ferramentas com que ele não conserta o telhado, ora mergulhando entre as latas de tinta que aguardam o inalcançável tempo de colorir as paredes.

Adentra-se a casa que esse desleixado anfitrião deixou aberta, e tenta-se em vão esperar que ele volte da compra dos pregos para fixar nas paredes os muitos quadros que não terminou, pendentes de um tom de azul que nem o mercado nem a indecisão fornece.

Tenta-se em vão esperar sua volta, pois dá nos nervos olhar para o quase de tanta coisa, e se acaba indo embora, não sem antes terminar algo minimamente começado.

Ninguém sabe ao certo se a reforma da casa de Ulisses, finalmente concluída, deve mais à sua ausência ou à impaciência de seus convidados. O fato é que não há mais nada naquela casa que lembre o proprietário, e isso para ele pouco importa, porque no verso da placa de lar, doce lar, acaba de escrever vende-se.

 

Águas perdidas

Quem viu doerem nos tímpanos de Elvira as margens cáusticas do rio Penado não se arrepende de ter ouvido, mas também não pede que ela repita como perdeu o filho para a foz das águas corredeiras no início daquele ano de nunca mais. Era manhã, para que se lembrasse o feito durante todo o dia, quando seu filho cavalgou orgulhoso um barco de madeira sem quilha. Ia ser soldado na guerra dos homens, ele próprio quase feito homem sem que Elvira se desse conta de que o tempo pinga milagres no chão, em meio às colheitas. Um soldado sem uniforme, sem pai, tragado naquela guerra de que não se via o fim nem se lembrava o começo. Arma, encontraria o recém-alistado no quartel, doze léguas abaixo, seguindo o Penado, onde o antes menino se embrenharia, transmutado em recruta. A chegada de mais uma peça de guerra envolta em trapos era saudada com os altissonantes elogios do alto-falante da base: “Se queres a paz, prepara a guerra”. É uma candura concedida às mães pela geografia daquela periferia alheia elas não ouvirem as mentiras do poder que separam suas próprias vidas da morte de incontáveis rebentos.

Fato é que o semi-homem desentranhado de Elvira dedicou-se durante dias a descer o rio rumo ao limiar da guerra, ansioso por ver ao longe o feio desenho da construção marcial. O forte Pináculo era o orgulho inicial daqueles soldados sem honra, desfilando uns diante dos outros sem qualquer brilho aos que os vissem de fora, valorosos, no entanto, aos seus próprios olhos, tendo trocado mães, irmãs e namoradas virgens por aquela bazófia de machos iniciantes. Não eram poucos os que descobriam, após mês e meio de sumário treinamento e risível bajulação patrioteira, no campo de batalha o fuzil sem cartuchos, vazio como suas mentes rasas, órfãs da sabedoria de uma vida inteira, que jamais viria. Era no forte, sem outros medos senão a figura do inimigo, que se punham a enumerar as façanhas fingidas com as jovens inventadas da aldeia natal, nenhum ali homem ou menino o bastante para dizer a verdade. O mais ladino deles estava a milhas de saber que sua mais poderosa sedutora era a sereia da guerra, que lhes desfiava aos corações o canto de honra aos heróis. Era ela quem lhes roubara de antemão a castidade dos sonhos, quando fez cada um prometer ao comandante e a si próprio converter em medalha de lata chula a vida da multidão de outros petizes mal crescidos do outro lado.

Quando Elvira não consegue quem lhe seja todo ouvidos, é ela própria toda olhos. Não os que enxergam, mas os que choram. Por muitos dias chorou a partida inexorável do próprio fruto, tanto que vozes temerosas ou parvas daquela terra muito recearam o poder da matrona sem glória de reverter o curso do rio com suas lágrimas, para trazer o imberbe e tolo frangote de volta à casa materna. Mas retorquiram os anciãos, veteranos de outros entreveros, que de tal sandice não se havia azo, por ter o rio sua própria altivez de varão indômito, e ser intimamente favorável à guerra. As vetustas barbas eram preguiçosas quando terminavam de ruminar as sentenças mais míticas e rebuçadas. Evidente, mesmo, apenas o solitário choro de Elvira, e ainda mais triste seu silêncio sem lágrimas, à margem dos passantes. Estou diante dela quando o último ouvinte entediado se afasta antes de as palavras e choro cessarem em seu rosto pisado. Também eu me afasto, incapaz de versejar o único consolo que me ocorre: que numa torrente gutural ela passará, também seu filho e eu, também o rio e a guerra. A natureza nos varrerá do cenário das dores, pranteando uma canção de esquecimento.

 

As núpcias em Alteia

Chegamos a Alteia ao cair da tarde. Poderíamos ter chegado pela manhã, mas não convinha desprezar as primícias do gozo com pressa malsã, ainda a festa de casamento nos ouvidos, como canção de bom augúrio. Pisamos o caminho com relutante languidez, apesar de necessária a viagem, pois vemos agora que ela seria emblema e portal, adestramento do riso pelas primeiras rugas.

Impossível circundar confortavelmente a serra, por falta de estradas. Em lombo de burro é que a viagem foi toda feita, e o cansaço ao fim da aventura era tanto que conseguimos achar bela Alteia, como o colono acha bela, de forma indagadora e alheia, a vista da terra prometida ou não pela qual lutou e na qual viverá amplos dias. Não que Alteia não tivesse encantos para nossos olhos lúbricos da fome de pele. Era uma povoação minúscula encravada no fundo de um vale, e com toda aquela rocha em volta, como muralhas, convidava os amantes a se fecharem um no outro como casulos ansiosos por se pertencerem. Já o rio barrento e insondável não tomava parte no convite: a cor invariavelmente ocre da água, a índole de ladrão de terras das encostas nuas e a parceria com o vento gelado e rude eram dádivas nada oportunas aos nascidos e criados em terra quente. Mas os frios habitantes da terra fria, sim, é que pareciam mesmo nos expulsar com os olhares ou com a preferível ausência de qualquer olhar em nossa direção. A maior parte dos que não varriam com gestos de mãos os novos forasteiros ignorava-nos ostensivamente. Era divertido a princípio surpreender seus olhos fugindo de nós. Tanto tentavam nos desprezar com sua mesquinha atenção que terminavam por nos fazer notados mais do que tínhamos desejo ou precisão. Afinal, bastávamos um ao outro, par nupcial entregue à sofreguidão diuturna, raramente interrompida. Agradecíamos secretamente sua distância, nós que ainda críamos em indiferença neutra. Porque não há, hoje sei, quem seja indiferente e não hostil ao objeto da indiferença. Aquele que não nos quer notar certamente tenciona ferir-nos com seu desprezo. A paz confortável que parece advir dessa distância nada mais é que um desamor guardado, esperando o momento do uso contra nós.

Dessa forma, não nos avisaram dos pontiagudos rochedos no fundo do rio. Minha mulher soube deles ouvindo a fala das filhas, esposas e mães que lavavam roupa na margem, de narizes torcidos para nós, apesar das tentativas de amizade. Uma delas, aparentemente a mais jovem, separara a roupa menos torcida que o nariz numa das pedras da margem, mas ao se virar para acrescentar peças lavadas ao monte, derrubou uma delas, se não me engano pano íntimo, que seguiu rápido rio abaixo, com a correnteza. Foi com deboche que a mais velha disse à outra: vai, nada e salva teu guarda-jóias. A mais nova riu e disse algo sobre deixá-la a ser rasgada pelos sátiros do fundo do rio. A extensão da conversa fez saber que ela se referia aos rochedos. Todas riram da pilhéria da mulher mais velha, que chamavam Tatira, e da resposta de Nanda, a mais jovem, e nem sei se tais eram mesmo os nomes delas, dadas a apelidos como a gracejos. Foi fácil o riso naqueles dias, as vacas estavam gordas, o capim era robusto, as lavouras davam sorrindo. Muito diferente de outros anos, quando se devoravam as batatas mais mirradas, e as reses, aparentadas das antigas sete vacas do pesadelo do faraó, pareciam rogar por escoras para não caírem de fraqueza, comendo os espinhosos cardos.

A triagem dos ditos entre as vulgares companheiras montou lentamente o mosaico: nos anos de agrura eram visíveis as pontas mortais do fundo agulhado do rio, não assim agora que a água era basta e levava embora da vista, sob a cor ocre da terra marginal, as rochosas pontas. À parte os chistes, era verdadeiro o temor que inspiravam as pontas de rocha à medida que o rio atingia nível triste, quando os pescadores somavam a carência do sustento ao incremento da atenção para evitar furos no casco. Mais de um já viera dar com o corpo moído aos limiares de Alteia, de barco sinistrado pela correnteza e pela pontiaguda rocha que emergia em meio à seca, feito monstro sazonal. E por termos teimado em ficar mais, malgrado a desfeita daquela gente, deliciados com o boicote aos forasteiros, chegamos ao fim do ano pródigo para descobrir que o incômodo vinha de bem mais do que a vista das perigosas agulhas.

Pois pouco além do início da estação seca, Plácida Rútila amanheceu escoriada na face, coisa de homem irado, e aqui e acolá outras mulheres vinham ver a manhã marcadas assim. Já outro dia, foi Pafúncio Falco que de veneno morreu, foragida a mulher, insubmissa ao punho violento. Alteia virava um triste pandemônio nos áridos anos, quando se discutia por meio pão a menos, negado em nome da carestia, e peixes corridos da panela, dada a pesca mesquinha. E o habitante pisado pela fome tinha diante de si, ao dar com a luz do sol, o rio barrento e seu pontiagudo deboche, prenúncio de leito seco, festim de morte. A carência de víveres punha todos em polvorosa, grande parte em retirada, sobretudo os homens, tentando irrigar o lar com cabedal vindo de outra parte, quase sempre distante.

Em meio a tanto infortúnio, no entanto, o povo de Alteia se convertia em gente cordial conosco, deitava longe a execração, isso porque nossas provisões inspiravam amparo e, temíamos até, o desejo de se apossar pela força do que nosso fosse. Mulheres vinham sem pejo pedir cumbucas de feijão ou farinha, que mandávamos vir de outras paragens em pequenos lotes, com risco de atraso ou perda sob ataques nas trilhas vigiadas pelo saque, e de olhares cada vez menos discretos, sob a vigilância ciumenta de minha mulher, enxergavam no homem forasteiro o provedor de mesa e cama. Os homens vendiam por bagatela e com olhar quase súplice a força de trabalho de que em outros dias se jactaram, mas era preciso ter à mão arma qualquer a lhes dissuadir da pilhagem do pão e da mulher alheia.

Alteia tinha assim duas estações pendentes do humor do rio: uma que lhe bancava a empáfia de vastas águas e cabedal, ambos mascarando as escarpas miseráveis que lhes iam no fundo do leito e da alma; outra a exibir toda a chaga humilhante, a miséria que amolda os homens entre moinhos de rocha e fome. E foi a seca de Alteia nossa escola primeira, dura lição depois do farto recreio, e quando deixamos a cidade, em meio ao inclemente estio, já tínhamos o gozo como véspera da solidão e do choro, das garras dedicadas a tirar de todos o que não basta a ninguém.  

 

Terra tingida

O tempo passava em barítono, esmagando biografias. O homem da camisa xadrez comia mui ostensivamente um bombom popular, antes que fosse tarde. Cada homem, mulher, criança ou pensamento que descia do ônibus tropeçava na cara perdida de todos os passantes. Não demoravam a perder seus ares de viajante e a ter vergonha da poeira da estrada, acumulada nas jaquetas e em outras carapaças. Quinze graus Celsius em um termômetro de parede expulso das memórias. Quem me dera que o mercúrio fosse suco de groselha, e todos os cacos de vidro espalhados fossem apenas os copos partidos com risadas, e todo o sangue vertido apenas litros de um coquetel derramado, de tão farto.

Mas ninguém consegue levantar o rosto que perseguiu o paladar desse asfalto áspero, e esbugalhou os olhos como que admirado da pouca atenção que lhe deram em vida e em morte. Os passageiros afastavam-se rapidamente, uns persignando-se, outros correndo para o próximo veículo, todos esconjurando o sangue como se ele pudesse e quisesse grudar nas vestes temporárias de cada um. Para afastar a lembrança, alguém reclamou do preço da passagem.

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