Uma luneta irônica e perscrutadora

Luiz Guilherme Santos Neves

Com o título de “De ‘Oh, Suzana’ a Luz em Agosto, referi-me, nestes Fatos e Coisas criados pelo escritor Pedro J. Nunes, à passagem em 1851, pelo Espírito Santo, do aspirante de marinha Edward Wilberforce, a bordo da corveta inglesa Geyser, na repressão aos navios que contrabandeavam escravos no litoral brasileiro. 

Se retorno à luneta de Wilberforce é para assinalar o tom irônico de algumas de suas observações no relato de viagem que ele escreveu, tom para o qual chamei a atenção no meu texto anterior sem, todavia, maiores esmiuçamentos. O meu propósito não é apenas mostrar o viés satírico de um olhar britânico sobre o Espírito Santo, em meados dos anos mil e oitocentos, mas recuperar recortes históricos sobre coisas e pessoas da singela província capixaba, captados através de uma luneta irreverente e perscrutadora. Portanto, um duplo objetivo, como foi também o caso de Wilberforce conforme confessado no prefácio do seu relato ao escrever que “enquanto me empenhava em contar minha história de maneira divertida, entremeei diversas informações práticas relativas a ancoradouros e baías da costa, que poderão ser úteis a capitães que naveguem por aquelas bandas” (íntegra do texto, sob o título O Espírito Santo sob o olho de uma luneta, disponível no site Estação Capixaba).

Levantemos, pois, a âncora e acompanhemos o olhar esmiuçador de Wilberforce.

A primeira tirada de humor já surge na chegada da Geyser à entrada de Vitória onde ficou à espera de um piloto de terra para conduzi-la com segurança às águas do interior da baía. Escreveu Wilberforce: “Finalmente um bote encostou trazendo um homem vestido com uma espécie de uniforme naval, que melhor seria chamado multiforme, pela ausência de regularidade e ordem.” Avançando baía adentro, escreveu Wilberforce, referindo-se aos fortes de Piratininga, em Vila Velha, e de São João, em Vitória: “As únicas fortificações que observei foram dois pequenos fortins de barro, contendo, a imaginar pelo seu tamanho, seis ou oito canhões cada. Estes não pareciam prometer grande segurança, uma vez que uma bala de 68 libras, bem arremessada, lançaria forte, paredes e tudo aos quintos dos infernos.”

Depois de ultrapassar o Penedo e encorarem em frente à cidade de Vitória, registrou Wilberforce, com uma discreta pitada de sarcasmo: “No minuto seguinte, defrontamos a cidade e o porto, no qual ancoramos em quatro braças. Apesar de haver alguns belos prédios nesta cidade, entre os quais o palácio do governador  é o mais visível, sua aparência geral é tudo, menos florescente.”

Após desembarcar em terra e percorrer a cidade de Vitória e seus arredores para conhecê-los, aos quais chamou bosques, campinas e colinas, Wilbeforce faz os seguintes comentários: “Depois de espiar em algumas lojas, e deparar uma lamentável escassez de sólidos de todo tipo, e uma igualmente lamentável abundância de líquidos”, numa campina que não identifica qual seja, informa que “havia uma casa, onde paramos para conseguir algo de beber. Uma mulher, um menino e um cachorro eram os únicos moradores. Este último, depois de latir e me morder, desapareceu pelos fundos; os dois primeiros foram mais corteses. O garoto apanhou para nós um coco de um coqueiro perto da casa, derrubando-o com uma vara comprida.”

Mais adiante, tendo apreciado suficientemente o interior [referiu-se assim aos arredores de Vitória], informa Wilberforce - agora com forte dose de sarcasmo - que “fomos até a residência do governador, e encontramos aquele autêntico potentado, um pequeno e robusto cavalheiro vestindo casaco azul com botões de latão” (*). E mais informou Wilberforce: “Caminhamos pela praça coberta de capim, que tinha evidentemente produzido sementes, e visitamos algumas lojas em busca de redes e renda brasileira”.  Dessas rendas, disse o informante que, se quem as comprasse fosse mais atento, “logo perceberia que o artigo brasileiro havia sido feito na Inglaterra, e exportado para os Brasis.”

Em seguida, o narrador emenda um comentário de fina ironia em que traça um retrato cruel dos comerciantes capixabas: “Pode parecer curioso para uma nação de comerciantes, mas o fato é que os brasileiros têm certa aversão ao trabalho de vender. (...) Na Inglaterra, se alguém perguntar por alguma coisa que o vendedor não tenha em estoque, este insistirá em vender outra coisa que considere um substituto à altura. No Brasil, se alguém perguntar por alguma coisa que o vendedor tenha em estoque, este insistirá em que o freguês peça outra coisa de que ele não disponha, para poupar-se o trabalho de atendê-lo.”

No dia seguinte ao de uma recepção a bordo da Geyser, que foi motivo do meu texto anterior sobre Wilberforce, ele e alguns companheiros foram de canoa a uma ilha não identificada.

Colhidos por um aguaceiro, desembarcaram e se abrigaram numa cabana.

A cena que se passa ali tem descrição risível: “Como nosso desjejum fora de carne fria, começamos a preparar um rápido almoço de presunto e ovos. O dono da cabana foi indenizado de qualquer incômodo com um copo de rum, que engoliu com uma expressão de divertido êxtase, pulando e assobiando de alegria.” Mas foi em relação a duas passagens da Geyser por Guarapari (tudo leva a crer que uma foi na vinda e a outra na ida da Geyser), que Wilberforce exercitou ao máximo o seu espírito de gozação. Os trechos são longos, e vamos encurtá-los, procurando evitar o prejuízo para o seu desfrute.

Na primeira passagem por Guarapari, conta W. que, ancorada a Geyser, “uma canoa comprida e estreita, manejada por dois remadores, veio em nossa direção por sobre os vagalhões (...) Amarrado firmemente o barco, um homem subiu com duas caixas de ovos e algumas pobres galinhas subnutridas. Foram comprados imediatamente, mas depois que a canoa retornou à praia os ovos revelaram-se todos podres e velhos, duas qualidades quase sinônimas. Não posso culpar o homem por nos vender tais coisas. Ele deve ter sido informado de que na Inglaterra só honramos o que é velho e inútil.

Mais tarde naquele dia, quando alguns oficiais desembarcaram, depararam com esse homem, que imediatamente fugiu, com todos os terrores de uma consciência pesada, acreditando sem dúvida que uma delegação do navio viera prendê-lo, a fim de enforcá-lo.”

Na segunda parada em Guarapari, conta o aspirante de marinha que ao entrar por descuido, junto com seus companheiros, numa casa que estava de porta aberta, “não vimos nada além de algumas crianças brincando no chão, e uma magnífica rede pendurada do teto, desocupada. Afastamo-nos imediatamente, mas não sem atrair sobre nós as mais terríveis consequências. Quando saíamos do recinto, encontramos uma velha que começou a matraquear contra nós tão implacavelmente como se fosse dotada do fôlego de trinta perus. Felizmente ela era parcialmente humana, não totalmente diabólica, e o pouco de humanidade que tinha transparecia na falta de ar depois de longo palavrório. Mas tão logo se calou, seu discurso foi retomado por um velho que parecia digno de ser seu marido, e a quem não desejo destino pior do que esse. Em tal discurso, porém, só eles é que falavam e só nós que ouvíamos, o que era a parte mais difícil. O marido seguiu o mesmo estilo da esposa, mas logo mostrou a inferioridade natural do homem em relação à mulher. Antes que tivesse terminado, ela começou de novo, puxando um coro de mulheres de várias idades, as vozes variando em cadência desde o grito estridente das jovens até o berro rascante das velhas. Inconscientes de nosso crime, batemos em retirada com o coro atrás, mantendo sempre a cantoria melodiosa. Por último veio um homem ofegante que se pôs a dar pulos frenéticos e socos em nossa direção, praguejando e gritando feito um louco. Naturalmente, nosso único recurso foi praguejar e gritar em resposta, o que fizemos com toda honra até o inimigo se retirar.

Em seguida travamos conhecimento com um personagem sorridente e gracioso, que nos acenou para chegarmos à sua casa. Foi muito cordial conosco e falava com amável franqueza (...) Ele era, na verdade, o mestre-escola, um daqueles ilustres cavalheiros de quem frequentemente ouvimos falar — os mestres-escolas do estrangeiro. Mostrou-nos todos os seus instrumentos de ensino, a tabuada e a palmatória, execrável instrumento do qual nem o Brasil está livre. Os brasileiros, portanto, podem alegar afinidade com o resto do mundo (...) O mestre-escola falava um pouco de inglês e tinha um dicionário de inglês-português e uma gramática, que nos mostrou e que lhe serviram de ajuda para traduzir algumas frases. Lendo uma frase literalmente, com o sentido de "Minha esposa está aqui", ele traduziu desta maneira: "May wumman ees he-ar"  [Seria este mestre-escola o mesmo Francisco de Paula Maia Oiticica que nove anos depois o imperador D.Pedro II encontrou em Guarapari, conforme anotação em seus registros de viagem?]. Numa loja que tinha persianas de cana e vime servindo de janelas, eu estava comprando algumas laranjas quando entrou uma velha querendo aguardente. Suponho que ela tivesse por volta de quarenta anos, contudo seu rosto era o mais enrugado e medonho que já vira. Uma mulher de oitenta anos na Inglaterra seria bonita em comparação com essa bruxa. Mas o clima tropical, que desenvolve as mulheres aos quatorze anos, as faz envelhecer muito prematuramente. Em outra loja havia um carola mal-encarado, parecido com um pregador (...) que vigiava a linda esposa enquanto ela cuidava dos negócios da venda. Comprei um peru, e outros perus foram comprados em outras lojas. Estavam todos tão calados que concluímos, recordando a aventura da manhã, que os perus de Guarapari haviam transferido suas vozes às mulheres dessa vila, recebendo a beleza delas em troca.”

Creio que, com esta sopa de transcrições, demonstrado fica o olhar risonho com que Wilberforce perscrutou o Espírito Santo com a lente de sua luneta, quando aqui esteve na viagem da corveta de guerra Geyser.

(*) A referência à farda remete possivelmente a José Francisco de Andrade e Almeida Monjardim, no período tampão em que assumiu a administração da província, de 03 de junho de 1851 a 09 de julho desse ano, quando foi substituído pelo bacharel José Bonifácio Nascente de Azambuja.

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