O relógio de estimação do senhor bispo

Luiz Guilherme Santos Neves

Suponho que fosse um Patek-Phillipe o relógio do senhor bispo, talvez sem a correntinha de ouro para não incorrer no pecado da ostentação.

Mas se fosse um Savonnette ou um Rosskopf também seria de boa prestança para o reverendíssimo D. Pedro Maria de Lacerda, durante suas exaustivas andanças pastorais pelos rincões do Espírito Santo, nos anos de 1880 e 1886.

A cronometragem do tempo, a que compulsivamente o prelado se devotou nas sucessivas consultas ao seu “belo e delicado relógio de ouro, o mesmo que trago agora comigo”, como informou na visita de 1880, não revela apenas a preocupação com a urgência que o acutilava no atendimento a um maior número de pessoas e localidades por onde passou na missão de pastoreio sacerdotal. Revela também o propósito de medir o tempo que era gasto no percurso entre os lugares que visitava. Foi o recurso prático e até novidadeiro, ao alcance de sua mão, para mensurar o tempo gasto nas distâncias percorridas.

Aqui e ali, e a qualquer instante, cruzando matas, rios, vilarejos e fazendas, o bispo sacava o relógio da algibeira que mantinha escondida aos olhos do mundo, no interior da batina, e anotava hora e minutos que o mostrador lhe indicava. Não chegava a descer aos segundos, o que seria esperar muito do senhor bispo ou talvez do seu relógio de época, desprovido, quem sabe, do ponteiro apropriado.  Mas horas e minutos não se dispensou o prelado de registrar religiosamente em seus apontamentos de viagem.

Às vezes o registro entre um momento e outro ocorria num espaço de tempo tão curto que fica evidente que o bispo nem sequer se dava ao trabalho de guardar o relógio porque a ele recorreria em seguida. Trazia-o ao alcance da vista enquanto viajava, fosse a cavalo ou em lombo de burro, fosse navegando em embarcações pelos rios ou, quem sabe, até carregado em cadeirinha para transpor imprevistos obstáculos de curto prazo. Quase se poderia dizer que a viagem do senhor bispo se processou ao ritmo do tique-taque do seu aristocrático e “delicado” relógio de bolso, obsessivamente consultado.

Pegue-se um exemplo.  

Na caminhada de cerca de seis horas que realizou na sexta-feira, 10 de dezembro de 1886, da atual Iúna ao Arraial do Espírito Santo (Muniz Freire), sua senhoria consultou o relógio dezessete vezes, o que equivale à média de quase três consultas por hora.

Leia-se a cronografia transcrita em seus manuscritos, editados sob o título Diário das Visitas Pastorais de 1880 e 1886 à Província do Espírito Santo (Organização e coordenação editorial Maria Clara Medeiros Santos Neves. Vitória. Phoenix Cultura. 2012 e site Estação Capixaba): “Às 9h 20’ parti e uns 10 ou 12 cavaleiros me acompanharam, e às 9h 27’ passamos defronte de poucas casinhas do Quilombo, afastadas da estrada... tomamos para a nossa esquerda para vermos a tão falada Água Santa, onde chegamos às 9h 45’... e às 9h 55’ saímos e às 10h 4’ estávamos já na nossa estrada, a mesma para onde viemos para o Rio Pardo... Às 10h 11’ passamos defronte do sítio do Barbosa... Às 10h 25’ passamos a pequena ponte do Laje... Às 10h 30’ passamos defronte do sítio Laje... Às 11h 15’ passamos a ponte do Jatobá... Ás 12h 47’ estávamos no alto da serra do Valentim... À 1h 10’ da tarde passamos um córrego grande... e à 1h 15’ passamos a boa ponte sobre o importante Rio Norte Direito... era 1h 25’ e o sítio chama-se Barro Branco... montamos a cavalo às 2h 55’, e daí a pouco cessaram os mesmos chuviscos... Às 3h e 10’ passamos a ponte do ribeirão ou córrego Vargem Grande que passa no Arraial Espírito Santo... Às 3h 30’ passamos defronte da cascata  ... Apeamo-nos à porta do Sr Marcílio... e meu relógio marcava 3h 45’.”    

Inúmeras outras anotações com marcação de horas e minutos como as que foram citadas permeiam os apontamentos de viagem de D. Pedro Maria de Lacerda. Tais anotações, caracterizadas pela precisão dos horários, têm o dom de revelar o espírito meticuloso do ilustre prelado, sendo de notar que eram feitas a cada passo da viagem num rascunho provisório para serem depois incluídas nos textos definitivos das suas visitas pastorais.

Creio que não se deva ir ao extremo de se ver nesse comportamento episcopal uma estranha tendência à “cronometromania”, mas não deixa de ser curioso que ao iniciar o diário de 1880, quando vem pela primeira vez ao Espírito Santo, D. Pedro Maria de Lacerda comece escrevendo: “Quarta-feira, 14 de julho de 1880: À 1 hora da tarde deste dia chegávamos à Cidade da Serra...” Idêntica obsessão com a hora repete-se na abertura das notas do terceiro caderno do bispo, em 24 de julho de 1886, num sábado: “Eram pois 11h 15’ da manhã quando chegamos à barra do Rio Itapemirim, ao som de foguetes e de tiros...”      

Fico a imaginar no quanto estariam muito mais fartamente pontuados de horários os diários do senhor bispo se dispusesse ele de um relógio de pulso.

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