Antiguidade do artesanato das
paneleiras de Goiabeiras, em Vitória

Luiz Guilherme Santos Neves

Já tive oportunidade de escrever que artesão é o João-de-barro, que constrói sua casa no bico. Mas se me restringisse a esta afirmativa estaria sendo profundamente injusto com os demais artesãos e artesãs que usam das mãos para fazer suas belas artes, inclusive as tradicionais panelas de Goiabeiras, em Vitória. E teriam elas todo o direito de se sentir ofendidas. Portanto, apresso-me em dizer que se o João-de-barro é o precursor do artesanato de barro na história do mundo, também é antiga a arte ceramista das paneleiras de Goiabeiras. 

Tão antiga que prossigo este texto imaginando uma foto em preto e branco de efeito simbólico: uma panela de barro sendo fabricada por uma paneleira cujas mãos se multiplicam em leque até onde é possível o seu desdobramento na imagem fotográfica.

O que pretendo com a visão imagística? 

Pretendo mostrar que o trabalho manual de uma paneleira guarda em si uma incrível quantidade de gestos repetitivos de igual resultado: o fabrico artesanal de artefatos de barro.

Nesse desdobramento de mãos artesãs que se perpetuam por milhares de vezes concentra-se uma poderosa carga de tradicionalismo, o perpassar da ciência de um fazer manual e perene que se transferiu de geração a geração como tesouro de sabedoria imorredoura. É um somatório de gestos em que nenhum movimento é em vão, nenhum toque de dedos é desprezível, nenhum apalpamento é insignificante ou supérfluo. Todo o incansável manuseio da massa geratriz que vai redundar no utensílio de barro tem a precisão matemática de um longo aprendizado que se propagou através dos tempos numa escala cronológica cuja medida não se apura por décadas, mas por séculos.

Que venha em meu favor a palavra de Auguste de Saint-Hilaire. 
Em 1818 - lá se vão mais de duzentos anos - o notável viajante e naturalista francês, estudioso da botânica e da zoologia - verdadeiro ecologista da sua época – esteve no Espírito Santo deixando preciosos registros que foram publicados no livro Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce, pela Itatiaia.

Ao passar por Vitória, Saint-Hilaire hospedou-se na fazenda Jucutuquara, pertencente ao capitão Francisco Pinto, a qual veio a se tornar o Museu Solar Monjardim.

O que viu na fazenda, compreendendo o trabalho diário de negros escravizados, é relatado em detalhes pelo naturalista francês.

Numa dessas descrições, ele alude à fabricação da farinha de mandioca a cargo dos escravos que descascavam com faca as raízes da planta e as ralavam num ralador de latão. A eles cabia ainda girar a grande roda de madeira que espremia a mandioca para extrair sua polpa que passava pela espremedura final numa peneira de fibras chamada tipiti. A massa que sobrava era levada ao fogo para secar numa caldeira de barro, onde a farinha era espalhada e ficava solta, para ser usada. A caldeira - relatou Saint-Hilaire - era feita em Goiabeiras, próximo de Vitória. 

A informação, de inestimável valor histórico, documenta a antiguidade do artesanato das paneleiras de Goiabeiras.

Saint-Hilaire não mencionou as panelas de barro. Mas ora, pois: para quem fazia caldeira de barro, fazer panelas era questão de redução no tamanho do artefato a ser trabalhado com mágicos passes de mão.

No magnífico ensaio Um pedaço de história tendo por tema a Torta Capixaba, que abre a série de textos do Fatos e Coisas do Espírito Santo deste site Tertúlia Capixaba, o competentíssimo historiador Fernando Achiamé lembra que “desde o século XIX, notícias de jornal registram a presença entre nós dessa elaboração alimentar típica. Claro que ela já existia bem antes; os jornais é que apareceram por aqui naquela centúria.”

Em A saborosa Torta Capixaba, trabalho publicado no volume primeiro da Coletânea de estudos e registros do Folclore Capixaba, o folclorista Guilherme Santos Neves também se refere aos anúncios de jornais sobre a Torta Capixaba na Semana Santa, e cita, por exemplo, o que foi publicado em A Gazeta da Vitória, de 28 de março de 1878. 

Partindo-se das informações de Fernando Achiamé e Guilherme Santos Neves, a conclusão se impõe cristalina: se havia tortas capixabas, haveria também, desde antes da existência dos jornais no Espírito Santo, a frigideira de barro – “estojo natural das tortas”, no dizer de Mestre Guilherme. E, por óbvia decorrência, havendo frigideiras, não iriam faltar panelas de barro para as peixadas capixabas (lembra Achiamé que a expressão moqueca capixaba é de surgimento posterior).

Esse recuo de tempo em busca da origem das panelas de barro não passa, porém de um mínimo recuo na raiz da história das paneleiras de Goiabeiras. Haja vista que pelo estudo do professor Celso Perota sob o título As paneleiras de Goiabeiras, publicado na Coleção Memória Viva, da Prefeitura Municipal de Vitória, verifica-se que a pesquisa de sítios arqueológicos pré-cabralinos comprovou a prática do artesanato da cerâmica por vários grupos indígenas há mais de um milênio, em território capixaba. De sua parte, em boa hora recebi por e-mail do notável artista e pesquisador capixaba Kleber Galveas a informação de que “a melhor tabatinga [para fazer as panelas de barro] foi produzida há cerca de dez mil anos, são sedimentos ricos em sílica e matéria orgânica da última glaciação”. Lembra ainda que “algumas panelas de barro, produzidas no Espírito Santo, estão ficando grossas, com queima incompleta e perdendo a cor negra profunda, tão característica.” Para ele, a queima a céu aberto muitas vezes é incompleta com o uso de refugos da construção civil em detrimento da madeira “escolhida na restinga e cortadas aquelas que produziam chamas com grau elevado de calor, como o abano, paraju e a almesca. Cada madeira revela sua identidade no grau de calor que produz ao queimar, a densidade e composição química variam de acordo com as espécies vegetais.” E discorrendo sobre a tintura das panelas observa que “a calda obtida da casca do mangue-macho (Rhizophora mangle), árvore que lembra um polvo com tentáculos cravados na lama, é fundamental para sua conservação. Algumas paneleiras substituíram essa etapa por uma defumação com ramos de aroeira, o que tinge, mas não protege com igual eficiência. A função do caldo obtido da casca do mangue-macho triturada e posta de molho na água, tanto em relação ao couro quanto às nossas panelas, não é tingir esses materiais, mas imunizá-los contra fungos: o couro, por ser 100% matéria orgânica, e a tabatinga, por conter restos vegetais e animais, apreciados pelos fungos.”

Está aí, sucintamente exposto, o longevo percurso da arte da fabricação de panelas de barro no Espírito Santo. Com isso, há que ser mudado completamente o quadro da foto simbólica por mim imaginado no começo deste texto para que as mãos da paneleira nela retratadas se multipliquem numa visão que se abra, não por centúrias, mas por milênios. É mudança formidável, uma nova ordem de grandeza fotográfica na escala do tempo que enaltece e consagra a atividade artesanal das paneleiras de Goiabeiras.

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