Entrada para um banquete

Luiz Guilherme Santos Neves

Este é um livro sobre livros.

Sejamos mais informativos: um livro sobre 57 livros, três deles com mais de um volume.

Total de páginas no conjunto?

Excedem a vinte mil, sem ser necessário contá-las nos dedos, das quais dezenas de centenas formam o miolo de dezesseis obras de autores capixabas.

Desse substancioso mochilão de livros, simbólica e emblematicamente empilhados na belíssima ilustração da capa a nos lembrar, em simultânea imagem, uma torre de papel e de Babel, fala-nos o leitor voraz que gosta de ser chamado Caco Appel.

Não contente em devorar com os olhos e com o espírito cada uma das obras em que mergulhou num tempo de leitura que se estendeu de 2012 a 2014, Caco deu-se à satisfação sobressalente de escrever sobre elas, um maître falando de um banquete.

As razões da decisão estão expostas no texto “O começo” – que abre as suas crônicas de leitura. Um abrir de conversa em que são apresentadas as balizas norteadoras da elaboração da obra, reunindo comentários e apreciações nascidas do puro enlevo de transmitir uma opinião de leitor a quem dela queira se servir e fazer bom uso.

Não à toa, veio daí o título batismal, em iluminada escolha: Leituras – crônicas do prazer de ler, crônicas que constituem realmente um prazer de ler para os leitores que as lerem, fechando-se à perfeição o denominativo do livro com o objeto denominado.    

*

Mas, além da pilha icônica de livros que se empertiga na capa lustrosa, e do explicativo texto inicial, as crônicas de Caco trazem na lapela uma epígrafe tirada ao padre Antônio Vieira.

É citação que tem tudo a ver com o espírito da obra.

Vieira a proferiu no sermão em louvor a Nossa Senhora da Penha de França, em 1652.

O trecho que nos interessa, do grande orador sacro, é o seguinte: o livro, sendo o mesmo para todos, uns percebem dele muito; outros pouco; outros nada; cada um conforme a sua capacidade. O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive, e não tendo ação em si mesmo, move os ânimos e causa grandes efeitos.

Não falava então o padre Vieira de livros em sentido lato, mas de um livro específico, relacionado a Nossa Senhora da Penha de França e aos milagres por ela derramados no mundo dos homens. 

No caso de Caco, a figuração imagística de Vieira, cravada na epígrafe, adquire significação generalizada, aplicável a livros e leitores. Desdobra-se em si mesma e multiplica-se em valores, visto que, se dos livros que leem, uns percebem deles muito, outros pouco, outros nada, cada um conforme a sua capacidade, no dizer de Vieira, Caco Appel se propõe conduzir pessoas interessadas nas leituras das obras por onde trilhou para mostrar o quanto tais leituras podem mover prazerosamente os ânimos e causar grandes efeitos.

Investe-se, assim, o autor, e o faz espontaneamente, na função de condutor de leitores pelos trigais da Literatura.

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No dicionário etimológico onde costumo ir para pesquisar as raízes do vernáculo e esclarecer minhas ignorâncias, leio que o verbo conduzir, de derivação latina, significa guiar, orientar, dirigir. É um tríplice significado que personifica, aos meus olhos, a missão de Caco Appel com as crônicas do prazer de ler.

E mentalmente vejo-o de mão estendida aos leitores que, de bom grado, queiram se deixar levar pelas impressões recolhidas aos livros que o guia e condutor, antes desses leitores, leu e aconselha sejam lidos.

Aconselha sem barroquismos acadêmicos, sem se arvorar a crítico literário, sem bancar o grão-mestre de bisturi especialista e doutoral na dissecação metalinguística de textos, contextos e intertextos.

As apreciações e os comentários contidos nas crônicas são simples, leves, agradáveis. É quase um li e gostei e por que gostei, ou não gostei, sem deixar de ser um convite explícito para que os leitores, imitando o autor voraz em que se transformou Caco Appel, façam-se também devoradores de livros como ele.

E quem devora livros, come-os, literariamente falando.

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Ao escapulir-me a frase sobre os livros transformados em objeto de gula, vejo que caio de novo no sermão de Vieira, puxado pela inspiração epigráfica a que Caco recorreu.

Pois lá está, nas palavras inflamadas do pregador, que ao profeta Ezequiel apareceu um braço com um livro na mão, e disse-lhe uma voz: Comede volumen istud (Ezequiel, capítulos 2 e 3). Come este livro!

Narra ainda Vieira que Ezequiel, seguindo fielmente a ordem vinda do alto, não titubeou, nem tergiversou: abriu a boca e comeu o livro, tendo-lhe sucedido uma coisa notável. 

Que coisa notável foi essa nos fala o mestre jesuíta dentro dos propósitos evangélicos da sua pregação. É ir ao sermão e conferir.

A mim me interessa tão somente pegar o gancho que me dá Vieira para dele tirar o melhor proveito, se disso sou capaz, para finalizar esta apresentação. O que, aliás, se me oferece com notória obviedade pela sugestão que salta aos olhos, vinda do padre-mestre.

Afinal, do que é que nos fala a obra Leituras – crônicas do prazer de ler senão de indicadores ditados pela voz preceptoral que nos alcança junto com a mão amiga que indica não um livro, como no caso do sermão, mas vários deles, para que sejam consumidos em banquete.

Abanquem-se, leitores, e comei-os todos, é o que Caco Appel nos aconselha.

Seguir-lhe a palavra é decisão de cada um dos Ezequiéis que aceitarem o desafio e aprovarem o cardápio.  E aos que dele provarem, almejo que lhes sucedam notáveis efeitos, como aconteceu ao velho profeta que, ao comer o livro que lhe foi oferecido, conheceu suas doçuras e mistérios.

 

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