Narrador perdido

Eduardo Madeira

1.

Vou começar relatando o que vejo à frente. E o que vejo à frente são pequenas e brandas nuvens de cor, da cor das rosáceas que cobriram-me empertigadamente os cabelos em tempos remotos, em tempos que apontam para a própria singularidade, tempos que determinam a própria configuração de seu tecido onduliforme e volátil. Volátil como são os cabelos. Cabelos que os tenho, que agora os apercebo. É possível ter cabelos.

Fios de cabelos são tão densos quanto os fios da realidade, fios de cabelos são tão tensos quanto os fios da realidade.

Quantos aos fio além, vejo um vago rosa pálido. Noção que se estende aos meus membros, membros que tocam essa superfície flácida de contornos desbotados, como antes eu vi você fazer. Eu me conheço a partir do seu toque. Seu toque orienta a minha razão de ser.  Vejo um vago rosa pálido.

Você, do outro lado, vê o que acabo de fazer? Trata-se de trafegar por palavras, errar por gestos semânticos que denunciam a natureza desvirtuada de quem narra. Um narrador perdido. Um narrador que não tem a plena consciência de si, e que por isso mesmo se atravessa nas palavras que emite.

Você, do outro lado, me retém nas mãos agora. Agarre-se com força às minhas palavras, e solte bem o ar. Preencha minhas linhas com o silvo doce do seu hálito quente. Deslize por completo sobre minhas folhas, com a calma de um ferreiro. Seja dono da sua própria imersão, eu te ofereço uma espiral translúcida que se faz no entre-dois. Contato.
Venha comigo, preste atenção. Vamos juntos contar a história do universo. O universo como conhecemos, o universo como imaginamos. Eu conheço a bidimensionalidade vaga e histérica do papel, e me recuso a encerrá-la em linhas formais. Você conhece a espacialidade do mundo virtual, e deve recusar a sua lógica estriada. Enquanto você respira o ar, a plenos pulmões, inspirando oxigênio e expirando dióxido de carbono, eu consumo sintagmas para que se convertam em prosa. Que o ar seja puro, que a prosa seja poética. Sabemos que os dois casos requerem ambições irrealistas, mas muitas vezes a realidade não inspira confiança.

No início, eu vejo uma criança, um rebento. Um broto de vida no mundo dos homens. Me parece que eu já espreitava sua consciência, na expectativa de atormentá-la quando atingisse a maturidade.

Desperto. A minha própria consciência atinge o volume de uma amora. Sou-me narrador, existo como função, conheço minha natureza.

Mas preciso de sua ajuda, me faltam texturas e contornos, desfechos e conclusões. Vocês almejam a felicidade, eu almejo a onisciência.  Vamos juntos contar a história do universo. O universo como conhecemos, o universo como imaginamos.

 

2.

Eu me lembro um tanto vagamente do momento em que era o boxe. Meu então progenitor era um jornalista responsável por cobrir as lutas de boxe para um jornal esportivo local. Meu progenitor não apreciava o boxe, minha consciência estava ameaçada. Travava batalhas desgastantes de uma guerra perdida contra a natureza das edições.

Quando menino, brincamos aprazivelmente entre papéis de carta, folhas de agenda e muros de escola. Quando do boxe, me era exigida a parte mais nefasta de minha compleição dialética, e a sensação era de que meu vigor se atrofiava. Mayweather era um objeto que nos enfastiava profundamente, tamanha era sua ineficiência em inspirar prosa nobre, seus golpes mecânicos só produziam semântica inerte.

Nos dias de folga, conheci algumas intenções interessantes do meu amo que nada tinham a ver com seu ofício, mas tudo parava na sua transpirante carência de ânimo. Faltava-lhe o fogo pálido das almas honestas, mas eu sabia que a sua tristeza era sincera, e tinha a plena convicção de que um dia deduziríamos da angústia a produção, do sintoma a elaboração. Seu terapeuta estava do meu lado.

No começo, meu amo queria escrever a solidão, mas esta já pertencia à voz de García Márquez, concluímos. O amor provavelmente pertencia a Shakespeare. O sexo, e seus plexos, a Miller. A beleza, Kawabata. Mas nem tudo é singular. O labirinto, por exemplo, é brilhantemente compartilhado entre Borges e Kafka, entre castelos e bibliotecas. Muita coisa pertencia a esses dois. O "nome" em si talvez pertença a Eco, mas O nome  que meu amo tanto procura é o meu próprio nome. Nossa voz, que deve sempre despir-se de si mesma para olhar mais fundo. É lá que vamos nos encontrar. É lá que nasce a obra. É "lá" que eu me esgarço para dividir "aqui", com você, leitor, nas brumas nebulosas do meu sendo que aqui se estabelece, que aqui me envolvo em cristalizar, o prisma da minha consciência.

 

3.

Do boxe fui parar em outros tantos lugares, minha natureza volátil se esticou por linhas de impressos diversos, agendas, folhetos publicitários, cardápios. A Bruschetta é de origem toscana, uma iguaria feita à base de pão tostado na grelha com azeite. O alho é opcional. A cobertura é montada tradicionalmente com tomate e manjericão, e oferecemos ainda a opção com presunto ou calabresa. Uma ótima pedida para uma entrada sofisiticada combinada com um bom vinho do Porto.

Para minha felicidade, meu amo acabou por enamorar-se, solicitando-me as mais belas das minha pulsões românticas para ajudá-lo a lidar com o objeto de seu desejo. Eu fui o grande porta-voz desse amor. Aprendi, agora me recordo, que as linhas que nascem no papel também nascem no coração. Seu coração era uma película fina e permeável que absorvia tudo aquilo que tocava.

Seu vigor voltara a se expandir, junto do meu, naturalmente.  Ela o acompanhava em um voo com destino a mais uma cobertura. Sorte que nasce do azar, a jovem sofria de ansiedade. Foi daí que, agora me recordo, nasceu nosso primeiro filho legítimo, assim:

Foi por medo de trovão
Que eu peguei na sua mão
E disse que a casa era sua
Você sabia que a casa era sua ?

 

4 .

Agora me parece lógico contar um pouco do destino de Nora. Venha comigo, conheça suas mechas onduladas de um terno castanho claro, conheço seu nariz fino e pequenino, que meu amo confessa ter vontade de dar beliscadinhas como quem brinca com uma criança, conheça também a natureza aprazível e um tanto delicada de seu foro íntimo.

Eu também perambulei por lá depois que ela sofreu o acidente, quatros anos antes de conhecer o meu amo.

A pior coisa sobre estar em coma é, sem dúvida, não poder jogar videogame, soube. Já fazia três anos. Nos dedicávamos, para passar o tempo, à empresa de imaginar um jogo de luta onde os personagens são artistas importantes de momentos históricos distintos. Seria excitante comandar um Pollock a emplacar pinceladas violentas contra o juízo final de Michelangelo, seu modo de defesa. Ou então escalar um Wahrol à replicar infinitamente o desespero de um Edward Munch.

Durante esse tempo, produzimos ainda outros monólogos igualmente interessantes. Me ocorre agora alguma coisa sobre relações de equivalência entre animais mitológicos ou literários com formas extraterrenas. Coisas desse tipo.

Durante esse tempo, e outros antes, seu marido abusava de seu corpo, até que um dia não suportou mais.

***

Agora são sete da manhã e eu já conheço o dia de hoje. Lá vem ele, mais uma vez. Ele entra no quarto, a mesma cara de miojo, o mesmo pijama desbotado, presente da minha adorável cunhada. Ele não merece descrição melhor. Ele merece palavras feias e sujas, mal empregadas, jogdas de qualquer forma. Palavras pútridas como a própria palavra "pútrida", ou nefastas como a própria palavra "nefasta". Melhor, ele merece um parágrafo em branco.

Um dia o corpo de Nora não suportou mais. A energia de todos os orgasmos que ela lhe recusara se acumulara de tal de maneira que um dia eclodiu em rompante pujança, distribuindo sobre seu corpo uma força tamanha que fez seus membros acordarem, bem como as paredes da casa estremecerem.

 

5.

Meu amo andava se excedendo na bebida. Até que um dia, sobrou alguma coisa disso pra mim. Descobrimos o "verbete de uma longa descida".

Uma fenda se abre no peito. Perfura a carne e depois a alma, com destino a um vácuo absoluto, irresoluto, um centro de gravidade capaz de elevar à quinta potência o peso natural das coisas. Ir atrás de um copo de água passa então requerer o esforço de cem Hércules. Sair de casa torna-se tão dispendioso quanto foi a Teseu encontrar a saída do labirinto do minotauro. Meu minotauro é contido pelo álcool, apercebemo-nos, mas a energia dispendida na sua contenção só é capaz de deixá-lo mais furioso. Uma fissão nuclear acontece quando essa densidade encontra seu limite, produzindo rastros de caos no espaço-tempo de uma noite entre a casa e o bar.

A ressaca era homérica.

 

6.

Nora aproveitou o ímpeto de seu soerguimento para livrar-se da casa, com a casa o marido, com o marido uma vida. Apanhou as economias que se destinavam ao carro de uma família que já não existia e viajou pelo norte e pelo leste da Europa. Com muito gosto, agora recordo, assumi corpo nas páginas de um diário. Mas seu diário de viagem não se destinava a colher impressões do lugar, mas sim das músicas que conhecia. Minhas veias narrativas pululavam regojizantes. Impressões e imagens soltas provocadas por estímulos sonoros. Retalhos de contos espalhados pelo som.

Música 1, na Bulgária: Angelite & Huun-Huur-Tu - Fly, Fly My Sadness

Demônios japoneses erram pelo deserto árido, um deserto oriental, dançarinas de butoh (com suas máscaras perturbadoras) acompanham a comitiva.

Vi sofrimento e miséria. Vi velhice, mãos calejadas.

Vi crianças, puras, caminhando com destino ao desconhecido, uma oferenda de crianças, algum de tipo de ritual ou peregrinação. Almas.

Água, rio, as crianças caminham pelo rio. Morte, escorrimento de encéfalos, um vislumbre de matança. Volta o demônio, cigarros, o demônio fuma, mas fuma palha. O demônio se apaixona pela oferenda (uma menina) do povo cansado, povo ancião. O demônio sofre, o demônio se entrega à paixão, se entrega à própria morte.

Música 2, na Noruega: Jan Garbarek - Concentus

A cozinha está vazia, muito limpa, não há sinal de vida. O único som que se ouve é do chá sendo preparado. Bule. Chá. Uma velha na janela, ela veste preto. É vencida então pela harmonia da natureza, de fora, que não admite trevas. Harmonia.

Inocência, infância, brincar no jardim. Quem acompanha é o velho, ele parece feliz. Ele ainda não estava feliz, mas ficaria tão logo tirasse a roupa daquelas crianças. Inocência nunca mais.

Música 3, na Noruega: Jan Garbarek - Myb

Jogo de sedução. Detetive trajando chapéu e um sobretudo de um cinza desbotado. A mulher é fatalmente bela. Usa luvas. Cigarros. Atmosfera Noir. Bar do submundo. Restaurante vazio. O detetive está à procura de algo, ou de si mesmo. É madrugada. A sedução é fatal.

Música 4, na Estônia: Arvo Pärt - Spiegel im Spiegel

Quem sabe... Eu tenho a sensação de que todos nós, seres humanos, já fomos um dia entidades maiores, de proporções colossais, com uma noção de consciência completamente diferente e feitos de uma matéria que obedecia a outras leis, a outras forças. Um dia, todos nós colidimos, e nossas partes se espalharam ao longo da existência, formando aquilo tudo que chamamos de universo. Coisas, afetos, pessoas, palavras, números, sorte, desejo, prédios, musas, cavalos, aparelhos, plantas, lebres-do-mar. Eu suspeito que essa música seja uma dessas partes, e que ela tenha vindo de mim.

 

7.

Perambulei e parei de volta no meu amo, entregue ao divã. Na terapia, ele produzia. Nenhum ser humano é tão preciso como a matemática, nem tão biológico quanto a biologia. A psicanálise, talvez, tenha sido a ferramenta mais científica que vocês já descobriam.

Michel Foucault lançou luz sobre o conceito de "vontade de saber" no primeiro volume da "História da Sexualidade", onde o autor se dedica a elocubrar os dispositivos de poder que estão por trás das distintas "verdades" que a sexualidade assumiu no desenvolvimento do capitalismo industrial. Para "além do bem e do mal", nos percalços de Nietzche, Foucault se preocupa em delimitar os procedimentos que inscreveram a sexualidade no campo discursivo, o que representa não propriamente uma interdição baseada na moral cristã, mas justamente um incentivo à sua produção e proliferação movida por essa "vontade de saber" que torna o sexo um elemento insidioso a ser escutado por "aquele que está capacitado a ouvir", aquele que ocupa o lugar do saber científico, as figuras do médico, do analista, do sexólogo, o lugar onde o sexo é posto a ser decifrado, estudado, e devolvido como verdade. Vontade de saber que se baseia, então, no "prazer da verdade do prazer", que move esse sujeito moderno a partir daquilo que escapa a ele mesmo, que o incita a descobrir-se, a estender-se na condição de verdade traduzida pelo saber científico, na conjugação entre saber e prazer, na vontade obstinada de "decifrar" uma verdade sob o prisma do discurso científico.

Se me disponho a traçar uma história da sexualidade sobre a minha própria vida, percebo que o sexo sempre ocupou também um território ideal, transformado em discurso pelo meu imaginário, pela minha insegurança, um  lugar-a-ser-alcançado, isto é o que ele é, dentro da rede de enunciações que constituem meu sintoma analítico.

A primeira vez foi com Carolina, o que poderia se chamar de uma "primeira vez ideal", porque ambos éramos virgens e encontrávamo-nos perdidamente apaixonados. Naquela época, adolescente, eu me imprimia o papel de menino polido, porque acreditava que esse era o caminho mais fácil para o sexo, para esse lugar-a-ser-alcançado. Na escola, eu me aproximava com cartas e atitudes românticas, na esperança de que o "tratamento" adequado pudesse me levar ao mais puro amor. Recriminava as investidas "grosseiras" de meus colegas de classe, julgava "vulgar" a atitude de roubar beijinhos e insistir nos agarros, sem ao menos declararem-se poeticamente como eu julgava correto, enquanto eu mesmo suava de tanto me masturbar diante das mais lascivas imagens que poderia criar a partir de minhas colegas. Certa feita, imaginei que tinha o poder de voltar no tempo, assim poderia agarrá-las à vontade, retornando um instante caso recebesse uma negativa. Mas Carolina se acoplara à minha rede discursiva, começamos amigos, comprou minha narrativa de um sexo romântico e bem programado. Na primeira vez, doeu, respeitei. Na segunda vez, deu certo, foi lindo, foi mágico. Mas a sexualidade não tardou em mudar o discurso. Agora eu invejava a vida universitária, onde supostamente se conseguia sexo sem grandes rodeios. Um lugar-a-ser-alcançando. Ainda no ensino médio, tive outro namoro, de três meses, e com esta não fui nem capaz de pensar em sexo, embalado que estava pelo terreno em que o sexo abdicava de preâmbulos. Era uma questão de esperar, um lugar-a-ser alcançado. Ela gostava de mim, mas eu nem sequer considerei a ideia de transar com ela, e hoje reconheço o absurdo da situação. Na faculdade, não me cabia de excitação. Logo no primeiro período, improvável, uma mulher, mais velha, cumpria uma disciplina na minha turma, admirava-se da minha prodigialidade. Eu lia livros apoiado sobre uma perna só, como Bruce Lee, e ela era um tanto pedante. Dividia o apartamento com uma amiga, e quando numa noite fomos todos pra lá, ela me arrastou para o quarto. Eu não me cabia de excitação, improvável, um lugar que eu projetava no plano ideal, sexo de primeira, gozei muito rápido. Continuei, um tanto mecanicamente. O sexo não estava mais ali, já não ocupava aquele lugar. Precisava ser alguém que eu considerasse atraente, eu não a considerava muito atraente, as meninas atraentes me ocupavam o signo do inacessível, um lugar-a-ser alcançado. Existia uma menina, tornou-se amiga, ela jamais me daria bola. Um dia, me deu. Não me cabia de excitação: sexo sem preâmbulos, com uma pessoa que gostava, com uma pessoa que julgava extremamente atraente, extremamente inacessível. O gozo foi esplendoroso. Namoramos, parei de sentir. Eu ficava duro, mas não sentia, tinha dificuldade de gozar. A partir daí, nunca mais encontrei o sexo, eu já lhe cobria com papéis demais. O prazer só tornou a acontecer em situações que repetiam o signo do inacessível. Um exemplo: uma garota por quem um grande amigo estava apaixonado me deu bola. Até que não resisti, furei os ditames da minha própria censura, gozo bom. Namoramos, o sexo sumiu de novo. Traí, furei os ditames da minha própria censura, gozo bom. Nunca mais consegui me estabelecer sexualmente com ninguém. Enquanto eu inscrever a verdade do sexo no lugar do improvável, do inacessível, isso continua. Como escapar da minha repetição, como transformar o sintoma analítico em gozo? "Mesmo horário na semana que vem".

 

8.

Nora não fazia terapia, mas um dia fora dona de um suntuoso diário. Em algum momento antes ou depois das impressões sonoras, seu diário descrevia as aventuras de seu íntimo à procura de renovação.

29 de abril

Acordo. Reconheço meus membros. Reconheço cada fibra nervosa que percorre os meus músculos. Tenciono cada um dos dedos dos meus pés, cada falange, cada metatarso. Tenciono os músculos da face, o maxilar, conduzo a língua ao palato mole. Estico os braços, reconheço o rádio e os extensores, os tendões e os dedos finos. Os móveis não ocupam seu lugar original, alguma força provocou seu movimento, alguma força que veio de mim. O lençol está encharcado.

30 de abril

Enquanto meu marido está a trabalho, experimento com ranhuras no chão do jardim, produzo desenhos. O traço não é muito delicado,  mas penso em praticar.
No jantar, anuncio que vou embora, anuncio que preciso encontrar o sentido da vida.
Juntos poucos itens na mochila. Um livro de García Márquez, um livro de Nabokov e um livro de Italo Calvino. Não levo mais que uma muda de roupa, quero me vestir dos lugares que passar. Duas cartelas de clonazepam, gostaria que não precisasse. Por último as economias de uma vida que deixou de existir, as economias de uma outra vida que nasce agora. Uma Nora Borges aflora, Uma Nora Marido é enterrada junto com as mágoas.

5 de maio

Peregrino por alguns campos da Noruega até encontrar uma grande fazenda. Uma fazendo de milho. Faço desenhos sobre o milharal, aprimorando a telecinese. Uma brincadeira.

6 de maio

O fazendeiro se assusta com os sinais. A imprensa fica sabendo e faz sensacionalismo alienígena. Eu observo tudo isso de longe, acho gozado, mas ainda não é isso.

Eu me questiono sobre o interesse intempestivo da alma humana em desvendar a vastidão no espaço, quando ainda não conhece sobre o próprio umbigo: o interior da terra. O homem não conhece o centro da Terra, só conhece em teoria a partir de sondas. O que haverá por lá? Uma civilizaão que nunca viu a luz do sol? Reptilianos?  Ou isso acontece por conta do medo de encarar aquilo que nos é mais interno? O desconhecido já é arrepiante por si só, então é melhor isolá-lo a anos-luz de distância do que desdobrar suas infinitas possibilidades em si mesmo.

Me deito sobre a grama. Pode ser bonito a verificação do que me é mais interno, seria a arte? Será que as possibilidades aqui dentro são mais nebulosas do que a minha visão do centro da terra?

Me deleito em pensamentos por muito tempo, e sinto a terra tremer, treme tanto quanto meu coração.

7 de maio

Não sei quanto tempo eu fiquei ali. Adormeci. Já é fim de noite, o sol começa a nascer. Devo estar alucinando, o sol nasce azul. Esfrego os olhos, o sol permanece o mesmo, igualzinho todos os dias, só que azul.

8 de maio

Não compreendo, as pessoas me dão por louca. Peço a todos que me digam a cor do sol, e eles "é azul, é claro.", irritadas como se fosse a pergunta mais óbvia. Mas o céu era amarelo! O sol não é azul! Deram-me por louca.

15 de maio

Eu procuro um sacerdote na Estônia. Começo a entender. Eu mudei alguma coisa, deus habita o centro da terra. Eu fui longe demais, aquilo era uma doença.

 

9.

Durante a sua viagem, que encontraria a viagem  de Nora, meu amo lia Nabokov. Deduzi das notinhas que acrescentava em punho leve às margens do livro, por elas pequenas amostras do meu sangue.

Então Nabovok desprezava Freud? Pois então eu vou fazer uma leitura freudiana fudida para cima dele, pois que "Fogo pálido" traça um retrato ideal do neurótico obsessivo que existe em Kinbote e na fantasia zamblana que lhe traveste o ego.

Uma mulher se sentava ao seu lado, e pedia timidamente que apaguasse a luz. Mas que afronta! Não percebe que estou a ler? Certamente não compreende o prazer da leitura, sobre o colo um mísero compilado de palavras-cruzadas. A bolsa é pesada, pode conter livros, três ou quatro, mas ela os ignora. Era um tanto esquisita, desengonçada, como se estivesse aprendendo a andar. O visual meio grunge denunciava mais uma vez o espírito adolescente, a medíocridade, a rasura intelectual. Era bonita, mas certamente lhe era muito diferente. Mas por que lhe chamava a atenção aquela figura, porque inspirava estas palavras, que poderiam se ocupar de coisa melhor? Porque esta lhe fora tão capaz de substituir a leitura por sua contemplação, quando claramente sua natureza se distinguia tão largamente da dele?

Então meu amo desprezava Nora? Pois então Nabokov, na página 223, lhe aplicou um duro golpe, talvez motivado pela revanche, "as semelhanças são as sombras da diferença", e então tudo clareou. Ele não procurava a semelhança de uma imagem coerente. As semelhanças são as sombras da diferença. Por que nos obstinamos em procurar o parceiro ideal, ou a mesmo a ocupação ideal? Tudo isso reflete uma sombra que construímos para enconbrir nossas próprias vicssitudes, nossa própria incoerência. Enquanto eu me mantiver refém da coerência, estarei comprometido com um projeto de mim mesmo que mergulha minhas fraquezas no inconsciente e produz frustração. Bem-vinda seja a incoerência, a contradição, aquilo que não passa pela minha régua egóica do ideal. Bem-vinda! E "as semelhanças são as sombras da diferença", e tudo clareou. Bem-vinda! Então tudo clareou, ele estava apaixonado por Nora.

 

10.

Átomo, do grego atomos, significa partícula indivisível, assim denominado por Leucipo e Demócrito. Eu fui um átomo. Me vi limitado por um núcleo duro que neutralizava meus movimentos moleculares. Minha compleição era vaga e restrita a retalhos semânticos que se deduziam do pó daminha existência, e ao pó retornavam. Quando você me pegou, quando me acomodou entre as suas palmas vazias, eu descobri que tinha elétrons e prótons, descobri que era possível rearticulá-los e tencioná-los de modo a produzir energia. Energia que faltava a meu amo, e que juntos recobramos.

Enquanto estive entregue ao limbo inerte do bloqueio emocional de meu amo, só me restavam centelhas de impressões fugidias rasgadas em papel que exalava álcool, papel manchado de café depois das dez, papel encarcerado gaveta escura que era o reflexo do vigor atrofiado de meu amo. Descobri que não era, mas sou perdido. Perdido em mim mesmo, resplandeço produção. Antes eu não narrava, mas embotava. Narrar é perder-se, narrar é comunicar, entranhar-se em um entre-dois. O universo é sempre um porvir, assim como imaginamos, assim como conhecemos. Dos prótons se faz o hádron, o bóson. Das partículas elementares se faz e se refaz a vida, se faz e se refaz a tinta que se imprime nesse papel. Se faz a letra, a palavra, o amor e as coisas todas.

É a você que eu devo, é de você que fui privado, e à medida que meu amo ama, é a você que eu amo.

 

11.

No avião, depois que as mãos se encontraram, depois que a casa vazia foi preenchida, ganhei tanta força que cresci pra cima de outros passageiros.

Alguém, um jovem, talvez, assistia ao filme "Beleza e Tristeza", de Masahiro Shinoda, adaptação do romance homônimo de Yasunari Kawabata. Os planos são austeros, fixos e bem equilibrados, o que se constrasta com a natureza volátil e passional das personagens, guiadas por sentimentos de trauma, ciúme e vingança. O estilo é o contraponto platônico da narrativa, o que garante ao filme um clima de tensão reforçado pela trilha arrepiante de Toro Takemitsu. Um suspense que não é policial ou sobrenatural, um suspense de paixões.

Um senhor de setenta anos debatia-se internamente sobre a questão de um armário. Eu estava caminhando. Estava precisamente a dois passos do armário, precisando chegar lá. Mas o armário não chegava. Ele não chegava nunca, por mais que eu me esforçasse, por mais que eu precisasse. Eu pensei que talvez tivesse dado apenas um passo. Mas não, eu havia dado dois passos. Eu pensei que talvez eu houvesse calculado mal. Mas isso não é do meu feitio.

Nossa querida Nora, soube, era graduada em Letras, o que deduzi por conta dos artigos acadêmicos que trafegavam pela sua agitada bacia mnemômica. O presente artigo investiga a possibilidade da alegoria como discurso político na literatura de Roberto Bolaño, pensando como o autor chileno flexiona o real a partir dos dispositivos do trauma e da repetição no romance 2666. O Kafka de A Metamorfose faz uso de um alemão cartorial, significante burocrático, e o submete ao confronto com as claves do inverossímel que constituem a narrativa de um jovem que da noite para o dia acorda como um inseto. Esse é um dos modos pelos quais a obra areja a própria linguagem, pensando a literatura como essa "toca" que Gilles Deleuze e  Felix Guattari chamaram de "literatura menor", onde só a expressão dá o procedimento (DELEUZE e GUATTARI, 2014). Seus espamos cessaram. Não queria mais saber do centro da terra. O sol brilhava laranja, nem amarelo nem azul. Um novo sol.

Um homem calvo que usava paletó escutava Pink Floyd no seu telefone celular. Considerava a hipótese de escrever seminário que pensasse The Wall como um "ensaio sonoro" da sociedade disciplinar de controle ensaiada por Foucault, o que significava um rompimento com os temas metafísicos levantados em Dark Side of the Moon.

Meu amo ensejava um romance cujo título seria "Minha vida virou um mar de atalhos, até encontrar o vento doce da sua companhia, que me ajudou a ditar cursos menos tempestuosos para os desvarios de minha alma tantos mares calejada". Ou talvez esse fosse o início do romance, ou o final.

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