Do que eu falo quando falo sobre a escrita

Eduardo Madeira

“na arte a sinceridade é não apenas a melhor política, mas a única”
(w. somerset maugham)

Em diálogo com Ernesto Sábato, Borges afirma, referindo-se ao fato de que o Dom Quixote é muito mais do que uma sátira contra o romance de cavalaria, assim: “Se ao final, quando termina a obra, o autor pensa que fez o que tinha se proposto, a obra não vale nada”. A frase diz respeito ao processo de criação de um texto literário que, certamente, deve partir de um planejamento, um roteiro, uma pesquisa, mas seu autor também deve permitir que o processo em si o leve a caminhos nunca dantes navegados, que seu processo lance luz sobre o desconhecido, que ele surpreenda a si mesmo e que não se torne refém do próprio discurso.

Mas a frase também diz respeito ao processo de recepção de uma obra. Pois, se as intenções permanecem inalteradas, ou a obra é um cofre hermético cuja senha só é conhecida pelo autor, ou as intenções são tão rasas que a obra se torna previsível.

Isso me remete a uma escola de estudos literários conhecida como “estudos de recepção”. O alemão Wolfgang Isser tem o conceito do “leitor implicado”, que, falando grosseiramente, pois nossa intenção aqui não é acadêmica, fala sobre tirar o leitor de um lugar historicamente posicionado e colocá-lo num papel de “coautor”. Tirar, por exemplo, esse estigma de que Kafka é um tratado angustioso do universo do Direito e da burocracia. Kafka, pra mim, é muito engraçado. Kafka é bem-humorado. Quem disse que temos de sofrer lendo Kafka? Não foi ele que disse: “Tudo que não é literatura me entedia”. Literatura é prazer, quer queiram os críticos ou não.

Mas por que estou falando disso? É pra justificar a precaução que eu quero ter para não falar demais a respeito do meu livro.  Primeiro porque eu gosto de pensar, retomando a frase de Borges, que eu subverti minhas intenções iniciais com este meu primeiro romance e que me envolvi num processo de auto-estranhamento para descobrir o estilo e a forma da narrativa. Esse auto-espanto, pra mim, é fundamental. Quando o escritor se surpreende com o que o escreveu, quase como se texto não pudesse ter saído dele. Afinal, somos fingidores. Pessoalmente, somos sem graça, mas, como mentirosos profissionais, usamos a palavra para que soemos interessantes. García Márquez, mesmo, afirmou que escrevia para que seus amigos gostassem dele.

Sobre isso do auto-espanto, me lembro que no roteiro do meu primeiro curta-metragem, “O uivo da carne na terra da luz” (2014), há um momento em que um marido lê um diário da esposa, onde ela relata uma experiência extraconjugal um tanto asquerosa envolvendo um mendigo. Peço licença para a leitura:

Calor. O suor me escorria pelas
partes. Um "noia" me parou na rua.
Ele estava tão sujo. Tinha uma
sobrancelha grossa. O olho esquerdo
estava injetado de sangue. Ele
pedia por dinheiro, eu disse não
tinha. Ele dizia eu saí da cadeia
ontem, eu disse não tinha. Ele
disse eu não queria roubar, eu
disse não tinha. Eu me coloquei a
andar, meio depressa. Ele me seguiu
até a esquina de casa. Eu chamei
pelo meu marido, ele não estava. O
"noia" estava parado na esquina. Eu
disse vai ficar parado aí? Ele veio
andando depressa e aqueles olhos
nervosos me fritando mais que o sol
de meio-dia. A minha cama estava
arrumada. Eu joguei ele na minha
cama limpa que eu tinha passado
essência de girassol. Eu tirei a
bermuda furada. Rangi os dentes
naquele piru imundo, cheio de sebo.
Fiz ele gozar nos meus seios
inchados. Era como o céu em cima
daquele pedaço de lixo todo suado
e encrostado de lama, mijo e
poeira.

Escrevi esse monólogo de uma vez e, quando li, fiquei perturbado. Fiquei assim: que sujeito mais perturbado sou eu, como eu posso ter escrito uma coisa tão repugnante? Senti necessidade imediata de sair de casa e andar a esmo na rua pra me consolar de mim mesmo.

Segundo, por que gosto de “não pensar” como Reinaldo Santos Neves, que em conferência à Escola Lacaniana de Vitória disse:

“Não estou acostumado a refletir sobre esses conceitos (de processos criativos). O meu compromisso é o do artesão. O artesão que escreve. O artesão que cria. O artesão que não pensa sobre o ato de escrever nem sobre o processo de criação. Apenas escreve e cria.”

Não tem nada de mágico nisso. Quando perguntado se “a escrita salva a alma”, o autor capixaba respondeu que essas coisas eram complicadas demais pra ele, até porque era agnóstico.

Pois bem, o caso da minha primeira peça fundida, o romance Bichos que habitam as frestas.

Quem lê muito, sempre tende à escrita. Como afirmou Pedro J. Nunes, a escrita é um subproduto da leitura. Muitas vezes já foi dito: quem não lê não escreve. Esse provavelmente é o único pré-requisito para qualquer escritor, seja ele bom ou ruim. Se é bom, é certo que também reescreve. O problema está em que, quanto mais se lê, mais se quer escrever, mas, ao mesmo tempo, quanto mais se lê os clássicos, mais se forma a consciência de que tudo de bom já foi escrito. Aliás, se me perguntarem, feito estudante de jornalismo faz, qual o maior desafio do jovem escritor, não direi que é o mercado ou a escassez de leitores. O maior desafio do jovem escritor é escrever bem.

O próprio Reinaldo Santos Neves, na voz de um personagem, atesta:

“Quem, hoje, será capaz de escrever melhor que Petrônio, que Cervantes, que Sterne, que Dostoievski e Tolstoi, que Melville e Henry James e Machado de Assis? Só essa incapacidade já deveria ser suficiente para que jogássemos fora os nossos computadores e deixássemos de fazer literatura para fazer outra coisa” (Heródoto, IV, 196, p. 129)

Mas é assim. Você lê, lê, lê e um dia encara os livros na sua estante. Ela está recheada de clássicos universais, particulares e também colegas contemporâneos. “Esse eu já li duas, três vezes.”, você pensa, petulantemente. “Desse eu já gostei mais.” E aí, uma hora ou outra, sentado na sua poltrona, tomando chá de camomila, se pergunta: “Não está na hora de ver um livro meu aí?” É como disse a autora norte-americana Toni Morrison, primeira mulher negra a granjear um prêmio Nobel: “Se há um livro que gostaria de ler, mas que não foi escrito ainda, então você deve escrevê-lo.”

Eu lia muitos autores japoneses, que lidavam com erotismo, melancolia, cotidiano, suicídio. Também lia muito Cortázar e Borges, que lidavam com o universo do sonho e da memória. Eu escrevia tentando combinar essas referências: melancolia, cotidiano, combinado com o universo do fantástico. Haruki Murakami, um autor que admirei muito na adolescência, fazia isso com alguma competência, mas seus livros oscilam muito em qualidade.

Bichos começou quando eu tinha 15 pra 16 anos. Eu comecei a escrever algumas narrativas curtas inspiradas em sonhos. Algumas me chamavam a atenção por conterem alguma coisa original de estilo.

Fui produzindo e organizando esses textos numa pasta que chamei inicialmente de “meus contos da palma da mão”, em referência aos “contos da palma da mão”, de Kawabata. Eram textos de uma, duas páginas. Naturalmente, com o tempo, pensei em organizar uma coletânea de contos. Mas não queria contos.

Sonhava em ser romancista.  Logo eu, que já era um jovem leitor de Borges, exímio mestre do conto, a ponto de me tornar um maduro leitor de Borges. Já havia lido e relido seu diálogo com Ernesto Sábato, quando os dois escritores discutem as diferenças entre o conto e romance. O conto é mais preciso. O romance, requer banalidades esporádicas. Ambiência. Se uma espingarda aparece no início de um conto, disse Tchekhov, ela deve ser utilizada ao final.  

O conto pode até ser mais elegante, do ponto de vista formal, mas não o contista. O romancista, depois do poeta, é o mais glamoroso dos escritores.

O conto requer mesmo uma precisão magistral. Meus textos eram furados, pediam uma espécie de voz que compete ao romance. Quando comecei a identificá-la, surgiu a personagem Ana. Criei uma história, e as narrativas curtas funcionavam para trabalhar a psiquê da personagem. Assim, a primeira parte do livro conta com capítulos curtos que dão conta de formar uma imagem delirante da protagonista. A segunda, linear, parte do presente e desenvolve a história do romance.

Algumas pessoas disseram que o estilo do livro é “esquizofrênico”. Há a busca de uma linguagem, uma vez que, assumidamente um romance de estreia, trabalho com uma consciente “má escrita”, uma “escrita hesitante”, de uma personagem que descobre na escrita uma maneira de dar forma às chagas de seu inconsciente. Ela mesmo alerta, no prefácio:

“Meus bichos, estes bichos, invejam os Cronópios, as Famas e o Povo Pequenino. Não ousam competir com a beleza da impermanência dos brinquedos de Barros, e cobiçam a estranheza dos Kappas de Akutagawa. Meus bichos tampouco se aproximam da precisão de um Odradek, e certamente não mereceriam menção na zoologia fantástica de Borges.

Meus bichos são escrotos, decrépitos e mal-educados. Eles são, simplesmente, errados. Mas não vá embora agora.

Um leitor observou que, ironicamente, a personagem se coloca numa posição de insuficiência canônica no início do relato, mas cita um catatau de referências nesse parágrafo citado. Bem, talvez esse aspecto pedante seja também um sinal de imaturidade da personagem.

Há, também, o universo dos sonhos. Questões de psiquê, memória. O estilo também foi construído a partir de inúmeras de leituras de psicanálise. Há questões de saúde mental, como depressão e ansiedade, temas que me são caros. Mas não pelo drama. Estive sim, por dois meses, internado numa clínica psiquiátrica. Mas o saldo foi positivo. Passava o dia inteiro lendo e, embebido daquele universo, produzi uma parte desse livro lá também.

Como escrever, então, um romance psicológico sendo “psicológico”? E sem ousar com o famoso “monólogo interior” imortalizado por Joyce? Se em Joyce há um fluxo de consciência, busquei trabalhar no meu livro o que posso chamar de “fluxo de inconsciência”.  Em Joyce, um longa-metragem sobre um piscar de olhos. No meu caso, uma cena curta sobre deus e seus parentes.

Na primeira parte, esse flerte com o surrealismo, mas que privilegia o trauma e as sensações, sem as grandes imagens simbólicas dos modernistas. Um “surrealismo sensório”. Há uma continuidade de ação, mas uma descontinuidade espacial. As cenas saltam de lugar de maneira absurda, sem que a voz narrativa se “espante” com as mudanças. De uma escada ela está colhendo lírios com um ciborgue, de Mimoso do Sul ela está no século 19 sendo deflorada quando criança. Cortázar é um bicho de estimação, dinossauros pedem leite no teto do quarto, essas coisas.

Na segunda parte, o narrador se pauta muito no cotidiano da personagem, cuja voz se alterna com a primeira pessoa. Uma espécie de realismo que não é social, engajado, mas afetivo. 

O que mais do processo? Fiz uma pesquisa sobre Física dos supercondutores, para compor o cotidiano da personagem, e isso me ajudou também a construir metáforas interessantes que cabiam no estilo “matemático” de Ana. Quando a personagem ficou clara pra mim, entrei numa espécie de delírio apolíneo. Suas culpas eram minhas culpas. Andava na rua como Ana, algumas cenas surgiram daí. Isso é muito comum. Umberto Eco passou cinco anos trancado numa biblioteca com livros sobre ocultismo para escrever O pêndulo de Foucault e, terminado o processo, seus amigos tinham certeza de que ele estava à procura do Santo Graal. Reinaldo Santos Neves se transformou num stalker para escrever Sueli, o que certamente não condiz com o comportamento tímido e supereducado que aqueles que o conhecem podem conferir no autor (se falo muito de Reinaldo é porque sou mesmo fã. Se Reinaldo fosse uma banda de rock, certamente pagaria trezentos reais para assistir seu show. E ainda gritaria: “Toca Ceia dominicana mais uma vez! Mas, pro bem ou pro mal, Reinaldo continua sendo aquele disco de jazz meio esquisito que as pessoas demoram as reconhecer.).

Mas isso do delírio. Como o ator no método Stanislavski, o romancista faz seu laboratório e entra numa espécie de surto com o processo. Quando não, escreve para expiar certo estado de surto preexistente, como Dostoievski, que escreveu O jogador para lidar com o vício na roleta.

No fim, oito anos escrevendo esse livro. Por mais “fragmentário”, “curto”, e “pós-moderno” que ele seja, tenho alguma consciência de ter feito o que eu podia por ele. Busquei ao máximo combinar esses elementos que considero fundamentais: leitura, pesquisa, pesquisa de linguagem, reescrita, harmonia entre forma e conteúdo. Há outros elementos: alguma ironia, muito intertexto. Esses dois são os que mais sobram na minha escrita atual. Ironia porque sem ela a literatura fica uma coisa passional demais. Intertexto porque, não tendo “vivido muito”, se eu tenho alguma coisa para dizer é sobre meu amor pelos livros que li, que vou ler, ou que vou escrever porque nunca li.

 

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