A origem deste romance está num sonho. Sonhei com uma jovem de seus vinte anos: ela sai do carro do namorado - com quem, bem o sei, acaba de se desiludir - e afasta-se na penumbra. É madrugada. O local é ermo e silencioso. Há uma colina com algumas casas e um grande número de árvores que me parecem casuarinas e eucaliptos. Uma ladeira asfaltada leva ao alto da colina. A moça caminha através desse cenário. De repente para e põe-se, entre surpresa e deslumbrada, a escutar alguma coisa. Eu sei o que ela está escutando: é o silêncio. A moça está fazendo a descoberta do silêncio.
Esse foi o sonho, e agora vejo o papel que faço nele; é o papel de narrador. A moça é minha personagem. Vem-me ao sonho para que eu tome ciência dela e a tire do sonho e a ponha onde deve ser posta: numa história.
Silêncio é para mim um fator de interesse pessoal. Concordo com Fellini em que uma das coisas de que este mundo precisa é um pouco mais de silêncio. Comecei, portanto, a pensar nas possibilidades de aproveitar o sonho literariamente. Ora, o que o sonho me deu foi uma única cena de um possível romance. Tive de me virar para descobrir o resto da história e poder contá-la. Fiz, parece-me, o que costumam fazer os paleontólogos que reconstituem o esqueleto de um animal a partir de um único osso: reconstituí o romance a partir de uma única cena.
Como procedi? A personagem era e havia que ser jovem; o mundo era e havia que ser o mundo dos jovens de hoje. Então procurei-os onde estavam ao meu alcance: nos blogs disponíveis na Internet. Ali fiz meu trabalho de pesquisa e dali extraí informações sobre a minha personagem e sobre o seu mundo: material suficiente para criar o cenário do romance e imaginar a mentalidade dos personagens e para produzir a linguagem narrativa. Batizei a personagem de Kitty - boa parte dos jovens de hoje usa diminutivos em inglês à guisa de apelidos. Daí, Kitty. A gatinha Hello Kitty, portanto, não é causa mas consequência dessa escolha.
O romance - a que dei o título provisório de Livro do silêncio e o tratamento meio que de fábula - deixou-se escrever sem me criar maiores embaraços. Tendo começado o trabalho em julho de 2005, em outubro já foi possível pôr nas mãos de pessoas do círculo familiar e de alguns amigos uma primeira versão, com outro título provisório - Kitty: Hello, Goodbye. Depois foi só incorporar sugestões feitas por esses leitores prévios e fazer mais duas leituras "autorais" e o livro estava pronto para sair à rua: primeiro romance que publico desde Sueli, ou seja, desde 1989.
Aqui apresso-me a esclarecer que a grafia incorreta de certas palavras ditas de baixo calão foi uma opção consciente: pareceu-me que tinha mais a ver com o tipo de narrativa e de narrador. Quanto ao perfil musical da personagem, foi construído se não às cegas certamente às surdas, já que rock não faz parte do meu mundo. Vitória, que Kitty e sua tribo chamam de Mic, é Vitória, ES, mas sem maior compromisso. Não há, por exemplo, nem na cidade nem no estado, uma universidade católica; da mesma forma, nem sei nem quis saber se já houve nestas paragens algum evento de moda na dimensão do Victoria Fashion Week. Inventei uma coisa aqui, ignorei outra ali, colocando acima de tudo o interesse literário. Também no interesse literário, como tenho feito em outros textos, alterei o nome de ruas de Vitória, porque os nomes que lhes pespegam os vereadores têm o dom de poluir qualquer texto de literatura.
Nos muitos blogs que tive ocasião de visitar está a fonte principal deste romance. A Internet me deu também algumas informações sobre desfiles de moda e a definição de divertimento, que é a que está na Wikipedia Encyclopedia, muito melhor, pelo menos para os meus propósitos, que a do grave Dicionário Grove de Música. E grande parte dos itens de consumo que aparecem no romance encontrei em edições da revista Monet querecebo mensalmente, guardadas que foram como possíveis fontes de pesquisa para trabalhos escolares do meu filho João, de nove anos.
E, em termos propriamente literários, onde estão as inspirações deste romance? Phil se chama Phil em homenagem a Philip Marlowe, o honesto detetive durão de Raymond Chandler - e, se Phil não é honesto, ao menos é durão, ou assim me pareceu. A mancha no rosto de Bruno é irmã da que desfigura o rosto de Flory, em Dias na Birmânia, de George Orwell. E o mito de Cinderela é o mito de Cinderela.
Ainda sobre Phil, a princípio cogitei confiar-lhe o ofício de narrador da história, mas logo vi que ele não poderia, sem o uso de soluções intrincadas, narrar os muitos episódios de que estaria ausente. Apelei então para a alternativa do narrador na terceira pessoa, mas alguma influência de Phil permaneceu comigo, de modo que sinto que é a ele que devo o tom narrativo do romance.
RSN
Vila Velha, ES, janeiro de 2006.
Nota introdutória de Reinaldo Santos Neves para seu romance Kitty aos 22: divertimento.