Às margens do rio escuro

Luiz Guilherme Santos Neves

Refinado. Literariamente refinado é o romance Às margens do rio escuro, de Getúlio Marcos Pereira Neves.

E o refinamento não está apenas na versatilidade da  linguagem de alto nível em que o texto flui, rio escuro abaixo, da primeira linha até a última. Está, sobretudo, na estruturação que o autor conferiu ao romance: basicamente três trilhos de desenvolvimento estrutural – folclore, História e ficção – sobre os quais a narrativa corre num manejo magistral em que cada trilho completa o outro e em que a falta de um ou de outro eliminaria a existência do romance.

Nesta conjugação de elementos conformativos, que várias vezes até se complementam com citações de trechos colhidos a outros autores – que, no entanto, não discrepam do contexto em que se encaixam – configura-se o romance com toda a sua irretorquível essencialidade literária.

É obvio que o fio condutor da narrativa é o da ficção: um projeto a ser escrito e defendido em nível de mestrado que acaba levando o seu autor às margens do rio escuro, em Itaúnas, norte do Espírito Santo.

A partir dessa motivação, desenvolve-se o romance consistindo na exposição de um amplo e variado painel etnocultural, impensável de ser posto no bojo de um romance e, no entanto, posto com engenho e arte à disposição do leitor. 

Basta ver que, do riquíssimo folclore capixaba, tem-se a presença do Alardo; da banda de Congo e da puxada do mastro; do Reis de Bois, com seus figurantes típicos e hilariantes; do majestoso Ticumbi – que desde a foto de capa detém no livro o protagonismo das tradições folclóricas que campeiam por suas páginas.

Quanto à temática histórica, a criatividade do autor percorre, sempre com extrema oportunidade, Portugal, África e Pernambuco fincando pé no Espírito Santo.

Ademais, fica evidente que a escritura da obra não só exigiu muita pesquisa como também o conhecimento pessoal do autor quanto ao meio ambiente em que o enredo se passa às margens do rio escuro e, por que não dizer, também às margens das dunas de areia branca formadas pelos ventos soprados do mar. 

No mais, é da ficção que o romance eclode com força estética navegando muitas vezes entre o mítico e o sobrenatural. Tanto que um dos seus momentos magistrais é a descrição do encontro, no âmbito da mata escura, com o ritual da Cabula e de suas praxes recônditas e assustadoras que beiram as raias do fantástico. 

A descrição desse encontro noturno e soturno remete às pesquisas que o autor realizou sobre o tema, a começar pelos registros do bispo D. João Batista Correia Nery.

A partir do bispo, Getúlio Neves engata História com Literatura no episódio da Cabula e produz a pujante  passagem com que encerra a primeira parte do romance, das páginas 49 a 56.

Destarte, aos informes notoriamente historiográficos colhidos ao prelado, Getúlio Neves confere grandeza literária à descrição da Cabula. É de bater palmas, e não exagero no que escrevo porque pode ser conferido nas páginas citadas, com um pedido de vênia:

Dai-me licença, carunga.
Dai-me licença, tatá”.  

Mas o romance não fica nessa linha de composição temática. Expande-se e desdobra-se em variações episódicas a exemplo de uma ópera à qual não falta um romance de amor dentro do romance cujo libreto é o passo a passo da narrativa, desde a abertura: “Agora seguia no rumo indicado e nada o deteria até chegar.”

A enunciação de entrada tem a força de uma crônica anunciada – que, por sinal, remete ao subtítulo do livro e fisga o leitor pelo que vem pela frente: um manancial de boa literatura numa pluralidade de desdobramentos alicerçados em fartura de pesquisas.   

É ler e conferir.  

Referência

NEVES, Getúlio Marcos Pereira. Às margens do rio escuro. Vitória : Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 2023.     

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