são os meus preteridos
em feixo de soluços
nestes sonhos datados
os meus anos colecionados
do calendário fixo no prego
na parede de azulejos – copa ao lado da cozinha
‘folhinha’ de papel couché sem foto de musa nua
e sim, ah mas claro que sim: óbvio
com sagrado-coração-de-jesus sangrando flechado e escarlate
(Sérgio Blank, in: Vírgula, 1996)
ligue os pontos:
. 4 hs a partir do momento vem o apartheid do
instante que é mais curto que o verbo
quando ou soa mais culto/ou leg
. 8 segs ião de horas sem ponteiro/ou n
. 0 mint
úmeros de um relógio no pulso/ou salto no
luto/pulo para o sol/ou
3.365 ds saliência do silêncio/que é est
a hora única...esta que desconto no
instante ou no momento... é que o tempo
tapeia todos e tolos fiéis ao
tempo... com seus cantos (seus crânios
e suas crônicas) e cabeças com dor
decantadas em versos, proezas e
sutis gêneros que só fazem mesmo é
linha/lenha (embl
. 2 hs emas deste
templo hirto aos cristos e às crises/
ambos
0,1 mint problemas críticos/
.24 hs inumeráveis
(In: Vírgula, 1996)
Vírgula foi um tapa pra mim, quando foi lançado por Sérgio Blank, em 1996. Causou-me estranhamento e encanto aquele conjunto de poucos e tão precisos poemas, com versos afiados e surpreendentes, tanto no que diziam quanto no “como” diziam. Dezesseis poemas que transbordavam ironia ao percorrer caminhos tão solitários e íngremes que tanto fascinavam o garoto de dezenove anos que eu era, leitor compulsivo que encontrava nos livros aquela palpitação e perda de fôlego desmedidas de quem está feliz, só e abandonado, “perto do coração selvagem da vida”, como uma vez escrevera James Joyce.
Em cada verso, uma/duas/três/sei-lá-quantas arestas diferentes. Impossível não me deixar atravessar por elas, ampliadas por rimas internas, intertextualidades, jogos verbais e semânticos inesperados, repletos de frescor mesmo quando se recorria às frases feitas (“a traça no ofício do osso faz a festa/ na dobradura do orifício”, em “Origami”) ou ainda as pequenas surpresas que me deixavam intrigado pelos dias seguintes (martelava-me incessante à cabeça, por exemplo, a dobradinha “os dias ímpares/ são meus dias preteridos”, como enigma sem solução).
Retomo o desgastado chavão da escrita como ato solitário porque é isso que me vem à cabeça quando leio o conjunto da obra poética de Blank – que se iniciou na escrita ainda adolescente, durante uma solitária temporada em Guarapari, onde viveu com a família, numa casa isolada de tudo e todos, durante cerca de um ano, após se mudarem de Cariacica. Longe dos amigos e percorrendo todos os dias a longa distância entre as duas cidades para ir e voltar à escola, foi na literatura que ele encontrou algum terreno seguro, primeiro como leitor, depois como escritor. E esse sentido da solidão atravessa toda sua obra publicada, desde a estreia, aos vinte anos, com Estilo de ser assim, tampouco (1984), passando ainda por Pus (1987), Um (1988), A tabela periódica (1993) e Vírgula (1996): “Eu os vejo como degraus de uma escada, seja ela para cima ou pra baixo, uma busca – essa busca é a da solidão da poesia”, declarou Blank, quando o entrevistei tempos atrás, ressaltando ainda que seus cinco livros de poemas foram pautados por amores (platônicos ou não), constituindo verdadeiras catarses, que muito me surpreendem por sua sofisticação.
Trata-se de uma escrita extremamente rebuscada, que tem muito a ver com o trabalho do modernista norte-americano e. e. cummings (escreve-se assim mesmo, em minúsculas), que o capixaba só iria conhecer no final dos anos 80, depois de uns dois ou três livros publicados – e essa descoberta quase o levou a desistir, como afirma no texto “Memorabilia”, depoimento publicado em 1997, na revista Você: “alguém já fazia, há muito, com perfeição, o que eu pretensiosamente, adolescente, intencionava”. Aliás, repare na precisão rítmica e sonora do pequeno trecho citado: o próprio modo de falar de si do Blank carrega muito do ritmo de seus versos. Uma fala tão esmerilhada que nos leva a crer que se trata de uma poesia lapidada por dias e dias a fio. E qual minha surpresa ao descobrir que é exatamente o oposto disso? “Eu sento e faço na hora, burilando na cabeça, no coração, no corpo. Os versos ficam caminhando comigo, mas não é por muito tempo não: dois, três dias no máximo”, afirma o poeta.
Aliás, os cinco “degraus” da escada que aqui estamos percorrendo apontam para uma certa depuração da forma, à medida que o percurso vai se estendendo: os versos vão se tornando mais intrincados, e o esforço de síntese passa a atingir também o número de poemas em cada livro: dos 73 poemas presentes no volume de estreia, marcado por um certo excesso juvenil, chegamos a pouco mais da metade em A tabela periódica (38 poemas), até desembocar no minimalismo de Vírgula e seus dezesseis petardos.
Blank também passa a publicar menos: se os três primeiros livros foram lançados num período de apenas quatro anos (1984-1988), seriam necessários mais cinco para que A tabela periódica viesse a público, e outros três até ele silenciar de vez com Vírgula – de lá pra cá, confessa Sérgio, ainda foram escritos dois ou três poemas solitários. De lá pra cá, ele passou a se envolver mais com edição de livros e, especificamente durante os anos 90, com oficinas literárias ministradas em projetos sociais da Prefeitura de Vitória, atendendo toxicômanos e pacientes com transtornos mentais graves, que afirma terem sido cruciais para refletir sobre o porquê da escrita. Uma pena que o resultado disso seja o silêncio de uma das vozes mais instigantes de nossa poesia, já há quase duas décadas, cuja ironia afiada é capaz de produzir versos atualíssimos como estes, de seu livro de estreia: “Hoje resolvi escrever/ Sobre a função/ Da poesia/ Na cultura/ Da sociedade atual/ Só consegui fazer esse verso:/ Os óculos abandonados à mesa viram tudo.”
Além da ironia e da paixão, outras presenças constantes nesses versos são a solidão e a angústia, vivenciadas não só pelo poeta mas também traduzindo um sentimento de tédio que, segundo ele, caracterizou bastante sua geração, que atinge a vida adulta numa época em que não havia mais revolução alguma a ser feita, nem política, nem sexual, ou até mesmo narcótica. Para Blank, ao mesmo tempo em que nos 80 tudo parecia ser possível e pouco ainda havia a contestar, havia uma certa tendência, que sua literatura de certa forma traduz, a se voltar para os dramas cotidianos e individuais, assumindo um caráter um tanto pessimista, que na época chegou a ser associado (erroneamente, reforça o poeta) a uma imagem de artista dark e niilista.
Bem longe do niilismo, o que vemos na obra de Blank são fartas referências da história da literatura e da cultura pop de massa convivendo com o burburinho da Rua da Lama e do Parque Moscoso no final dos anos 80 – tudo muito ruidoso e urgente, nas entrelinhas desses versos, verdadeiros atestados do presente em que foram concebidos. Contudo, essa urgência cede lugar, aos poucos, a uma escrita mais serena, a uma observação mais detalhada do tempo deslizante e quase imperceptível do cotidiano, nos incontáveis dias ímpares numa terra em que solidão é verbo mal-conjugado que insiste em estacionar nas rachaduras das paredes dos quartos quase vazios e semi-silenciosos.
Em 2011, a Editora Cousa recolocou a obra poética de Blank em circulação, reunindo integralmente seus cinco livros na coletânea Os dias ímpares. Ficou de fora somente o belíssimo livro infantil Safira, premiado no concurso literário do Departamento Estadual de Cultura (DEC) em 1989 e publicado em 1991, uma rara aventura do escritor na prosa de ficção, até hoje frequentemente reeditada. A edição inclui ainda uma farta fortuna crítica sobre Sérgio, atravessando esses últimos trinta anos. Essas publicações, mais o livro Sol, solidão: Análise da obra de Sérgio Blank (2007), de Sinval Paulino, são prova de que, a cada dia, a obra de Sérgio Blank instiga novos e ávidos leitores.