Graças ao escritor Pedro J. Nunes foi edificada esta capela de contos, tendo mulheres nos altares.
Pedro J. Nunes nasceu em Calçado, mas conta a lenda que seu berço de origem é Ibitirama. Ele contesta a versão lendária.
Como escritor, Pedro J. Nunes é um autodidata e, se cursou alguma oficina literária, nunca fez alarde desse galardão. Vindo para Vitória, passou a ganhar a vida dedicando-se às letras – fez-se escrivão por ofício. Dele se diz que, além do talento que tem, é dado a ter boas ideias.
Nas manhãs de sábado, a Livraria Logos, na Praia do Suá, vira um pensionato de escribas e de leitores vorazes, que ali se reúnem sem outro propósito a não ser o de tomar cafezinho e jogar conversa fora, num ritual de convívio, como diz Renato Pacheco. Fala-se de tudo pelo prazer do diálogo – logos, logos and logos.
Foi de Pedro J. Nunes a ideia deste livro, congregando escribas do pensionato dos sábados para escreverem sobre mulheres em diversa caligrafia. Uns disseram logo que sim, outros que iam ver. A obstinação de Pedro J. Nunes não deu trela aos recalcitrantes. Caligrafar foi preciso.
A coletânea está aqui, com o apoio dos que resolveram prestigiar. Cabe aos leitores julgar se valeu a pena Pedro J. Nunes quebrar lanças pela edificação desta capela onde nem sempre se queima aos altares o mais puro incenso.
Apareci com a proposta num desses sábados: um livro de contos sobre mulheres, com algum erotismo, alguma santidade. O Luiz Guilherme logo abriu-se sorrisos, não sei se pelo livro ou pelo tema: "pode ser uma boa ideia". O Grijó olhou oblíquos olhos, mas já na quarta-feira seguinte ligou-me: "o conto está pronto", e fez-me bebê-lo com um café no Boulevard da Praia. Renato, que tudo sabe, entregou o conto com ressalvas: "não sei se é erótico". Adilson, pelo telefone, topou logo. O Reinaldo, discreto, pareceu-me, ao lado de Luiz, um dos mais entusiastas. O Tião, após longo resistência regada a protestos de ambas as partes, também compareceu. Só faltavam os comentários do Mazzini e as gravuras do Armando, que só topou mostrar seu traço bissexto desde que não se obrigasse a mostrar a cara. Tudo isso discutido nas barbas dos demais parceiros de sábado e café, Bonino, Zé Neves, Sérgio e Lugon, que não escrevem, mas leem, e ficaram cobrando o livro o tempo inteiro.
Vê-se logo que não há muito mérito no trabalho de organização. A tarefa foi pacífica. Sem nenhuma pretensão, o livro Mulheres - diversa caligrafia fez-se entre amigos. Estes, parceiros de ofício e apreciadores do tema, deitam na brancura do papel um dos muitos assuntos que lhes torna as manhãs de sábado quase infinitas. O trabalho do organizador foi tão-somente recolher o material e enfeixá-lo.
Domingo. Ainda com restos de um sono lastreado pelo copo de vinho do almoço, ligo a televisão. Está passando um antigo filme de cowboy, daqueles bem quadradões, com mocinhos mocinhos e bandidos bandidos. Muita ação a pouca especulação. Um velho faroeste tratando das asperezas do mundo natural, da luta do homem para enfrentá-lo e das suas tentativas de estabelecer bases mínimas de sobrevivência. Sobretudo um mundo de machões sem lei, com predomínio do mais forte.
Num certo momento do filme, o mocinho, para fugir de uma tempestade de neve, entra numa cabana que, na verdade, é uma espécie de estalagem. Lá dentro, sentada ao pé do fogo, sozinha, está uma mulher, a primeira a aparecer na história. O filme, um B despretensioso, tem um momento de profunda mudança. Toda feiúra anterior, todos os episódios de violência são passados para um evidente segundo plano. A presença luminosa daquela bela mulher muda tudo. Lentamente vai-se estruturando o encontro fundamental. O mundo áspero se transforma num mundo de expectativas e, também, de esperanças. O mocinho, quem diria, se transforma num gentil-homem e, ao dirigir-se à mulher, fica repetindo "madam", "madam" com demonstrações de extrema solicitude. Reafirma velhos preceitos masculinos próprios dessa versão do gentil-homem que homenageia, cerca de cuidados a matriz da vida e, naquelas circunstâncias, de forma velada, vislumbra uma possibilidade de prazer. Possibilidade que, no entanto, está comprometida com sentimentos e com códigos, desenvolvendo-se num clima de sutil sedução mútua. O filme dá uma guinada de cento e oitenta graus e fica bem interessante.
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Ainda na linha do filme de faroeste, penso na dessacralização - digamos - desses códigos que, desde o tempo do gentil-homem e seus descendentes, veio seguindo um roteiro inesperado. Acredito que um dos atuais endereços que mostram o processo de fragmentação a que foi submetido o antigo cavalheiro pode ser encontrado, via de regra, na novela televisiva na qual os códigos estão submetidos, de forma direta, às chances de indução à venda de bens e serviços econômicos, nos apelos publicitários dos intervalos comerciais. É difícil acreditar à primeira vista, mas evidências nos mostram que a atitude X do galã da novela em relação à heroína varia numa relação diretamente proporcional de indução à venda de Y toneladas de sabão ou coisa semelhante. Um leque de situações emparedadas no férreo torniquete da propaganda. O ex gentil-homem é um pobre coitado, um ser estilhaçado à venda nesses açougues da periferia cultural onde são também oferecidas em butiques de gosto duvidoso as denominadas partes pudendas do corpo feminino. Aliás, dentro da mesma linha de filmes que tratam a violência como uma coreografia da brutalidade e que nos é impingida como se fosse uma nova versão do ballet Bolshoi.
Diga-se ainda, de passagem, que não apenas esses códigos mais nobres são violentados, mas também sofre o trivial código do consumidor. Não raro, esse consumidor propriamente dito descobre que está tomando banho não com o deslumbrante sabonete do anúncio, mas com uma bomba de amônia que enche o box de seu banheiro de vapores irrespiráveis. O plano de saúde encaixado no intervalo comercial prometendo todo o conforto naquelas horas difíceis da enfermidade, na primeira dor de barriga se mostra um embuste. E assim por diante.
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É uma sólida e conhecida verdade que a velha e boa literatura foi e continua sendo o refúgio tradicional onde se abrigam os grandes temas que envolvem o relacionamento amoroso. Uma dimensão do humano que naturalmente ultrapassa meras aplicações utilitárias como as aqui mencionadas. Padrões que constituem valioso acervo da experiência humana. Afinal, por exemplo, as Julietas, as Sanseverinas, as Capitus são verdadeiros patrimônios culturais da humanidade.
É, portanto, um prazer falar de uma antologia de contos de autores capixabas nessa linha da melhor literatura e que trata sobretudo desse ser maravilhoso, às vezes enigmático, mas sempre adorável que é a mulher.
"Mulher - diversa caligrafia" delineia os eternos temas da renúncia, do amor confrontado com novas necessidades materiais de consumo, dos ardis, da oposição prazer/morte, da trama clássica envolvida na escuridão de alcovas com portas que rangem nos gonzos, no tema do tempo que flui e destrói o sensível mas não atinge o mundo inteligível do universo platônico, das misteriosas esquivas determinadas pelos meandros da alma feminina ou dos resultados de uma forte repressão.
Pedro J. Nunes, Francisco Grijó, Reinaldo Santos Neves, Sebastião Lyrio,Adilson Vilaça, Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco, autores das histórias, fazem parte do primeiríssimo time da literatura capixaba. Autores que, nos últimos tempos, têm demonstrado que, em nosso torrão, também se faz literatura de boa qualidade. É o que fica evidenciado nesta antologia.
Vitória, 17 de março de 1995.