O grande encontro

Dora Dalmásio

Que não se admire quem chegar à Livraria Logos da Praia do Suá num sábado pela manhã e se deparar com um grupo de pessoas ao redor da mesa de tampo redondo transparente situada no fundo da loja. É bom ficar sabendo que está em curso um ritual chamado sabalogos, encontro que reúne cidadãos de idades e profissões variadas. Em comum, eles têm algo: o gosto pela literatura.

Mas não é apenas isso. Trata-se de um verdadeiro encontro de pesos-pesados da nossa intelectualidade que, durante duas horas por semana, transformam a Livraria num celeiro vivo de refinado saber. Basta dizer que do grupo fazem parte Renato Pacheco e os irmãos Luiz Guilherme Santos Neves e Reinaldo Santos Neves, escritores capixabas contemporâneos que estão entre os do primeiro time da literatura brasileira.

Além de escritor, tem poeta, historiador, professor, juiz, advogado, arquiteto, engenheiro, psiquiatra e bancário, alguns deles agregando duas ou mais categorias. No grupo há membros do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES) e da Academia Espírito-santense de Letras. “Nenhum de nós é pretensioso, não somos os maiores. Isso aqui não é uma ‘capelinha’. Reunimo-nos por pura amizade”, explicam.

O tradicional encontro, que neste ano completou dez anos de existência, é realizado das 10 horas ao meio-dia, horário em que a loja fecha. Debruçado sobre livros e catálogos de preços de obras, regado a cafezinho (oferta da casa) e papos diversos, o grupo passa duas horas de pura e agradável higiene mental. Vez por outra rola um vinhozinho tinto matinal, o que causa estranheza a quem está de fora.

Alguns clientes costumam torcer o nariz em direção ao grupo, devido ao barulho e às espirais de fumaça que vêm daquele canto da Livraria. Três membros do círculo são tabagistas. Mas, como diz Reinaldo, “até agora ninguém atirou sobre nós nenhum pé de sapato velho”. No começo do ano letivo, quando o movimento se torna maior devido à procura por livros didáticos, a confraria se estabelece em outra área da Livraria, de modo a não atrapalhar as vendas.

Luiz Guilherme explica que o interesse comum pela literatura ditou a formação do círculo e daí veio a habitualidade. A adesão foi pelo acaso. Os pioneiros foram Sérgio Luiz Bichara e João Bonino Moreira. A eles juntaram-se mais quatro adeptos e, hoje, o grupo conta com cerca de quinze membros. Dificilmente, porém, os sabalogos registram um quórum absoluto. A média de comparecimento é de oito pessoas. Neste ano, de dois em dois meses, o grupo passou também a almoçar reunido, numa confraternização gastronômica com direito inclusive a ata.

Embora o grupo tenha se formado em razão do gosto comum pela literatura, esse não é o assunto em pauta o tempo inteiro. Aliás, não há pauta nem assunto dominante e isso é que dá sabor aos encontros. Como costumam dizer, chatice não sobrevive no grupo. “Conversamos de tudo e os papos e brincadeiras correm ao sabor das sugestões”, diz Luiz Guilherme. Entre conversas acerca dos assuntos que estiveram em destaque durante a semana, de política a futebol, há também espaço para temas mais relaxantes como anedotas, narradas sob a sonoplastia de Pedro J. Nunes.

De espantados a flutuantes

Segundo contam, a adesão aos sabalogos é livre, desde que haja identificação. “Uns são ‘espantados’, porque destoam do grupo. Outros são flutuantes”, explicam os confrades. O círculo não é nenhum clube do Bolinha e mulheres também podem fazer parte. Mas, cavalheiros que são, certamente as pouparão de ouvir as “anedotas cavernosas que maculam o grupo”, como menciona a ata de comemoração dos dez anos de existência do grupo, redigida por Sérgio (*).
Com relação à entrada de “novos sócios”, escreveu Sérgio no citado documento:

“... a forma de aderir é ser penetra, pedir licença, como manda a boa educação, puxar a cadeira, se ela estiver por perto, ou pegar uma que esteja a serviço das mesinhas inexpressivas, em outros cantos da Livraria, e se achegar aos que já estão ‘enrodados’. Chegar aos bons? Nem tanto. Mas esta chegança não quer dizer aceitação, pois o grupo tem as suas químicas e idiossincrasias. Ninguém assina ficha nem recebe número de matrícula, não há solenidade de posse nem discurso de recepção como numa academia de foros consagrados, mas só se poderá considerar integrado ao círculo se o círculo, dentro de duas ou mais sessões, não repudiar o penetra. E por que repudiaria? Insondável mistério este que é da natureza do grupo, do seu mais inexplicável âmago, como se fosse uma pirosfera fervente e azeda capaz de vir à tona contra o rejeitado (...)”.

Gozadores letrados

As brincadeiras e gozações entre eles são uma constante. Na hora de posar para as fotos, Renato Pacheco sapeca: “Façam um ar de inteligência!” Sérgio, engenheiro elétrico e funcionário da Escelsa, é chamado de blecaute boy. Desnecessário explicar o porquê. Quando ele titubeia na resposta de alguma pergunta que lhe seja feita, o coro é certo: “Ih! Deu apagão!”

Bonino, um dos mais engraçados do grupo, é o cat killer, em virtude de seu horror a gatos. A esse respeito, ele conta que, certa vez, pronto para ir a um casamento, pisou num cocô de gato, o que o obrigou a trocar todo o traje. Desde então, passou a exterminar todos os felídeos que encontra em seu caminho. “Já foram 38 baixas”, garante.

Troca de ideias e experiências

Mas o que significa fazer parte dos sabalogos? “O melhor dia da semana é esse”, diz Sérgio. Victor Biasutti, que há sete anos integra o grupo, afirma que as reuniões são um complemento da rotina de sua vida. “Eles (referindo-se aos companheiros) são mais elevados. Absorvo o que posso”, diz o humilde mestre, que publicou livros de contos e tem outros no forno.

Ivan Borgo, considerado o grande cronista do grupo, classifica os encontros como uma troca de ideias e experiências. Conta que Navegantes, livro de contos que publicou em 1997 (seu pseudônimo é Roberto Mazzini) prefaciado por Luiz Guilherme Santos Neves, mereceu um curioso comentário por parte dos leitores, que diziam: “Mas que belo prefácio!” O grupo cai na risada.

Autor do livro O Novo Arrabalde, Carlos Teixeira de Campos Júnior considera as reuniões um casamento perfeito entre seu trabalho como professor e a bagagem que assimila dos companheiros. “Aqui se reúnem cabeças privilegiadas. São pessoas que têm uma importante produção intelectual sobre a realidade do Estado, principalmente histórica”. Foi em fevereiro deste ano que o juiz de Direito Getúlio Marcos Pereira Neves chegou ao grupo. O mais novo da confraria - em idade e tempo de “filiação” - Getúlio relata que as reuniões, além de propiciar a troca de informações, agora contam com outro ponto positivo. “Com os almoços passamos também a conhecer bons restaurantes”.

Michel Minassa Júnior é membro dos sabalogos desde o início. E nem o fato de ter participado do Vital o impediu de marcar presença naquele sábado, 4 de novembro. Cliente da Logos há muitos anos, “porque profissional de Direito vive em livraria”, aderiu ao grupo por força da profissão e por gostar de ler. “Essas reuniões completam o sábado. É uma convivência rica e eu sou um aprendiz. Se há pessoas que acrescentam algo à história do Espírito Santo, são eles”, diz, em alusão aos brilhantes cavalheiros da távola redonda da Logos.

“Este é o dia da calça de elástico e do sábado sem gravata”, define Bonino. Ele conta que outras livrarias reivindicaram o acolhimento do grupo. Mas, como? - replica -, se não se pode fumar, contar piada, nem falar alto?

Para Pedro Nunes, adepto do grupo desde a origem, o clima dos encontros é saudável e divertido, tendo a mesa redonda uma função catártica. Ele, que não lê jornal nem vê televisão porque não quer saber o que vai pelo mundo - “é tudo a mesma coisa, só muda a forma de rapinagem” -, recebe da mesa algumas informações mastigadas e isso lhe basta.

Responsável pela sonoplastia das anedotas que circulam na mesa, ele explica a brincadeira. É que, além de levar todo sábado uma piada nova para a roda, costuma, ao contá-la, gesticular e imitar os sons alusivos a cada história.

 

(*) A autoria da ata atribuída aqui, erroneamente, a Sérgio Luiz Bichara, é de Luiz Guilherme Santos Neves. Acerca do equívoco, armou-se polêmica, pura gozação é claro, que pode ser lida clicando aqui.

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Jornal Metropoliano - Quinzena II - Novembro 2000

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