A autenticidade é loira

Entrevista de Jeane Bilich a Sidemberg Rodrigues e Fernando Cardoso

Livre pensadora, libertária, intelectual orgânica... curiosa por natureza, cronista concisa, apresentadora carismática, radialista inesquecível e observadora arguta. Talvez essas expressões possam definir algumas de suas facetas, mas nunca resumiriam a jornalista e escritora Jeanne Bilich, falecida este ano, vítima do câncer de pulmão. Avessa à censura e a qualquer forma de filtro, sua autenticidade conflitava com os adeptos de farsas, panos quentes, relações “estratégicas” e com toda falta de sintonia com sua inquestionável transparência - e integridade! Fiel a si mesma lidou com a morte de forma direta – e mesmo surpreendente! – comprovando que os que “vivem como gostariam” têm a prenda da serenidade e do desprendimento no crepúsculo da vida.

Na verdade, ela vinha se preparando para o “último ato” com bastante antecedência, tendo elaborado um testamento há alguns anos, para endereçar seus pertences com fidelidade à sua vontade. Tive o privilégio de ser uma das testemunhas no cartório à época. Sempre falou da morte com naturalidade. Fumou até o final de sua vida, sem expressar qualquer arrependimento. Jeanne morreu e viveu realmente como gostaria e sua fidelidade a si mesma impressionava os parentes e amigos, a quem o privilégio de conhecê-la iluminou e transformou a vida, conforme revelações em seu funeral.

Carioca e com descendência croata, nascida em 12 de outubro de 1948Jeanne Figueiredo Bilich tinha graduação em direito e mestrado em ciências políticas, sendo advogada, jornalista por ofício e escritora (publicou pelo menos três livros, centenas de crônicas e textos em geral), para resumir suas principais atividades profissionais e literárias.

Seu apartamento, na avenida desembargador Santos Neves, era, por ela, apelidado de “O Castelo da Bruxa”. Abarrotado de estantes com livros em todos os cômodos, fotografias, bonecos (bruxas, inclusive), com direito a muitas plantas e uma árvore de tamanho razoável na sala a espalhar suas ramagens pelo forro e paredes, além de esculturas, novos, antigos e sempre sonoros relógios; lembranças de viagens, presentes de amigos e muitos tomos de um Diário Pessoal que ela chamava de “Cadernos de Anotar a Vida”. Ali, registrava suas impressões sobre as pessoas e o mundo, com colagens para ilustrar alguns fatos. Jeanne viveu em uma espécie de museu particular, que deveria ter sido conhecido pelo público, dadas sua riqueza, diversidade e história.

Em uma entrevista, ao ser perguntada sobre o que o Castelo significava, afirmou que a melhor definição de seu refúgio fora dada pela sobrinha-neta Lavínia Bilich, em uma carta a ela endereçada pela menina, aos 12 anos: “é um espaço de sobrevivência”. Nesse oásis, em meio a tanto deserto externo, Jeanne viveu – deliberadamente - e morreu corajosamente, sendo que, antes de adoecer, nos concedeu a entrevista que se segue, atualizada posteriormente. Um presente que resgata e homenageia sua memória.

- Que motivo faz Jeanne Bilich sair da cama todas as manhãs?
R - A curiosidade pela mutabilidade permanente do ‘teatro do mundo’.

- Qual(is) sua(s) paixão(ões)?
R - Livros, imprensa, cinema, fotografia, viagens, plantas, bichos & pássaros. Sou apaixonada pelo bailado cotidiano dos beija-flores nas janelas da minha casa. 

- Como você foi parar em um colégio de freiras?
R – Em 1961, aos 12 anos, quando da morte do meu pai, Miroslav Bilich, ocorrida em Belo Horizonte onde então a família Bilich residia, cheguei ao Espírito Santo – que eu não conhecia –, objetivando prosseguir meus estudos ginasianos no tradicional Colégio do Carmo ou Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, estabelecimento escolar onde a irmã da minha mãe, Irmã Maria Luiza de Figueiredo, era professora de matemática e secretária do colégio. O destino me levou para um colégio de freiras.

- Sendo uma pessoa livre por natureza, como lidou com o rigor de uma instituição como esta?
R – Com certa dificuldade... e transgressões (risos).  

- Pode descrever a situação, de preferência citando fatos curiosos?
Claro! Fato biográfico curioso: leitora voraz, desde os meus 5, 6 anos – meu pai era refugiado político e assim assinante dos jornais e revistas do mundo inteiro – fiquei restrita, no colégio interno, à leitura exclusiva das hagiografias (ciência que se relaciona com coisas sagradas).  

- Sendo você a pessoa que é, como lidou com essa falta de liberdade e tantos filtros?
R – Pessimamente! Mas os Numes me ajudaram! (risos). Após eu ler livros e mais livros sobre a vida dos santos do imenso panteão católico, belo dia deparei-me, em uma da estante da biblioteca do colégio, com um livro grande de capa preta, cujo título era “Index Librorum Prohibitorum”. Como estudava latim, fácil foi para mim traduzir –“Indice das Obras Proibidas” pela Igreja. Pensei; “Uau, isso é um tesouro!”.

- E então?
R - Após copiar os livros listados na página inicial num caderno escolar pus-me a pensar qual jeito eu daria para ler essas obras, pois o colégio interno ou ‘Campo de Concentração Católico’ como eu o considerava (e ainda considero) proibia às internas acesso a todos os meios de comunicação – rádio, jornal, revistas – e, obviamente, qualquer leitura que não constasse a chancela oficial da Igreja – “Nihil Obstat Imprimatur” nas páginas iniciais da obra. Explícita e cruel ditadura religiosa. Lavagem cerebral. Asfixia do pensamento. Cárcere.

- Como conseguiu oxigênio para suportar essa “asfixia intelectual”?
R – Através de uma estratégia! Minha identificação era JB 11. Copiei, pois, disfarçadamente os seis títulos iniciais constantes do Index e gastei semanas a pensar como agir para ter acesso a essas obras. A primeira da lista ostentava o título para mim hipnótico: “Por que não sou cristão” do filósofo Bertrand Russel. Um desconhecido à época, claro! Bem, como todos os demais pensadores listados na sequência: Maquiavel, Espinosa, Locke, Hobbes, Rousseau, Montesquieu, Voltaire, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Émile Zola, Flaubert, Balzac, Jean-Paul Sartre, entre muitos outros. Potente farol a rasgar as trevas! (risos)

- E a estratégia?
 R - Com o dinheiro da mesada enviado mensalmente por minha mãe, convenci uma colega externa (que fazia matérias na mesma turma, mas ficava em casa, fora do colégio) a ser minha cúmplice no “contrabando” dessas obras – uma a uma, naturalmente – para o interior do campo de concentração católico. A primeira que escolhi foi o livro de Bertrand Russel, que encabeçava a lista do Index. Caso apanhadas no “crime” pena capital: expulsão de ambas!

- E sua colega topou sem restrição?
Sim! Corajosa, a leal colega externa correu o risco. As obras passaram, então, a me ser entregues mensalmente no decorrer das aulas, quando alunas externas e internas frequentavam a mesma sala de aula. Único contato com o mundo exterior. 

- E como você conseguia abrir os livros se o sistema normalmente é tão rígido?
R - Para lê-los sob a vigilância cerrada e incansável das Irmãs de Caridade? (Uau! O panoptikon de Foucault - “Vigiar & Punir”. Isso era rígido até nos banhos diários – quando éramos obrigadas a vestir uma camisola xadrez até os joelhos, trazia bordado no peito o JB11. Banho coletivo vigiado por uma das irmãs, que se postava num local mais alto – uma abertura na parede – sobre a fileira de chuveiros para vigiar o banho das alunas. Proibido ver e tocar no seu próprio corpo. Dificuldade, pois, para se ensaboar e lavar-se sob a “mortalha corporal” ou camisola do banho imposta pelo Sistema Educacional Cristão vigente.) 

- E quanto aos livros?
R - Bem, para ler as obras idealizei furtar os tocos das velas da capela que se acumulavam numa das gavetas do pesado móvel colonial localizado na sacristia, situada atrás da capela. E também uma caixa de fósforos. Para quê?! Para ler à noite sentada no vaso sanitário do dormitório coletivo, exíguo espaço, aliás, único e diminuto local dotado de porta, onde se podia desfrutar de fugaz privacidade. Assim, após as orações noturnas na capela e a subida para o dormitório em fila indiana, apagadas as luzes, esgueirava-me às escuras para o “quartinho” (banheiro) – assim o chamávamos – acendia o toco de vela e lia, lia, lia... em posição quase fetal. Não sem antes, forjar uma falsa Jeanne adormecida sob lençóis, feita com o cobertor para a vigilância noturna a religiosa crer que eu estivesse a dormir.

- Face à pressão religiosa do pecado, como ficava sua consciência?
R – Pois é, e assim os anos sucederam-se (1961-1963). Mas... como conviver com a culpa que me torturava pelo furto continuado e recorrente das velas na sacristia? Obrigada pelas Irmãs a ir ao confessionário semanalmente, belo dia, num assomo de coragem, confessei ao Padre Cabral, entre torrentes de lágrimas e soluços, então o padre-capelão do Colégio do Carmo, religioso da Congregação Salesiana, o meu “crime”.

- E as consequências?
R - Para meu imensurável alívio & conforto o Padre Cabral jamais denunciou minha transgressão às Irmãs de Caridade, em especial à minha severa tia (graças à norma rígida do “segredo de confessionário”), mas, – inaudito! – passou ele próprio a me prover dos tocos de velas que me passava sub-repticiamente, quando eu ia à sacristia pedir-lhe a benção (risos).

- Digno de um milagre...
Sim, um verdadeiro e autêntico santo homem, Santo Padre Cabral – humanitário, oxigenado, lúcido e libertário! Padre Cabral não me castigou, não me tolheu, não me denunciou. Na verdade, hoje eu o considero meu “cúmplice” no crime de ler escondida no vaso sanitário do dormitório. Contribuição fundamental para a minha jornada intelectual que definiu e define a minha vida. A ele, devoto o meu preito da mais profunda e eterna gratidão! Dádiva impagável.  

- Você se considera uma transgressora? 
R - Não sei se esse adjetivo me caberia em âmbito genérico... Sou na minha mais íntima essência, digamos, uma “pensante” ou livre pensadora, libertária por vocação, imutavelmente aguilhoada pela curiosidade. Avessa à censura, filtros ou qualquer forma de cerceamento do livre pensar. A curiosidade, aliás, era considerada perniciosa ou “doença da curiosidade” por Santo Agostinho, que a definiu como pecado grave. “Para o cristão – escreveu ele – basta crer que a causa de todas as coisas, celestes ou terrenas, visíveis ou invisíveis, é o criador.” Ou seja, aos curiosos confere-se um passaporte diferenciado para o ingresso “post mortem” no inferno cristão. (risos), sem direito ao autoconhecimento... (risos)

- Já fez análise? Qual o melhor caminho para o autoconhecimento?
R - Não, nunca fiz análise com profissional da área e nem qualquer terapia. Talvez, isso sim, autoanálise sob estímulo dos muitos livros de psicanálise, psicologia e filosofia que leio com grande frequência & vivo interesse.

- Se tivesse que se restringir a um pensador, este seria...
R – Isso seria de todo impossível. Na verdade, a “árvore do conhecimento” possui incontáveis galhos e densa ramagem e, portanto, é do confronto de ideações, pensamentos, doutrinas e/ou filosofias, as mais variadas e diversas, que se obtém uma “Visão de Mundo” subjetiva, ampla e pessoal, ou seja, no meu entender, muito mais confiável e próxima daquilo que acreditamos ser A Verdade ou Alethéia, como diziam os gregos. Isolar-se num só e único pensador ou ideólogo é perder a oportunidade de se conhecer a fantástica variedade do pensamento humano a desfilar no correr da Linha do Tempo Histórico. O caminhar do pensamento humano soprado pelo Espírito do Tempo ou Zeitgeist. E corre-se, ainda, o sério risco de filiação à ortodoxia ou dogma. Que, por vezes, conduz ao paroxismo do fanatismo, barbárie ou à cegueira. 

- Nem em termos de predileção ou reincidência na leitura?
R - Claro, tenho os meus filósofos & cientistas preferidos – Nietzsche, Schopenhauer, Espinosa, Darwin, Einstein, Bertrand Russel, Sartre, Ortega y Gasset, entre tantos e tantos outros, sem mencionar a imutável paixão pelos pensadores gregos. E aqui aproveito para realçar a figura de Hipátia (360 d.C), filósofa neoplatônica, astrônoma e matemática que com seus vastos e múltiplos saberes iluminou a Biblioteca de Alexandria

- Se tivesse de escolher um compositor, quem escolheria?
R – Também difícil selecionar somente um único compositor. Creio ou sinto que a música acompanha as mutações céleres do nosso sempre volúvel “estado de espírito”, ou seja, sentimento ou sensação que se manifesta naquele exato momento, naquele determinado dia, preso a essa ou àquela circunstância existencial vivida. 
E como lindamente poetou Mestre Fernando Pessoa; “Vivem em nós inúmeros (...) Tenho mais almas do que uma / Há mais ‘eus’ do que eu mesmo.” (...) Exatamente assim! 
Ninguém é um só! Somos vários a flutuar na corrente do tempo, movidos por nossos sentimentos, anseios, anelos e desejos. Reféns, por vezes, também das circunstâncias externas que nos capturam. A música, portanto, nos “veste” o espírito com a roupagem adequada àquele momento determinado. Para citar alguns compositores que amo destaco Puccini, Bizet, Verdi, Mozart, Wagner, Beethoven, Massenet (especialmente Meditação de Thais, esta recorre como minha favorita), Carlos Gomes, Villa-Lobos e no universo da MPB, destaco primeiramente Chico Buarque de Holanda, seguido por Gilberto Gil, Caetano, Maria Bethânia, enfim, a ”turma geracional” do movimento Tropicália, bem como Ivan Lins e Rita Lee. E, por vezes, ouço também os clássicos do JazzDuke EllingtonArmstrongElla FitzgeraldSarah VaughanBillie Holiday, Gershwin, Irving Berlin, entre outros.   

- Rádio, TV, jornal ou Internet?
R – Todos os citados, dependendo do momento, local ou ocasião. Jornais – impressos e on-line - leio-os, diariamente, pela manhã, na minha biblioteca: Folha de S. Paulo, Estadão, Valor Econômico, O Globo, A Gazeta, A Tribuna, El Pais, New York Times, Le Monde, etc. Quanto à TV, limito-me a assistir aos telejornais e fielmente a dois programas da TV Cultura: Roda Viva e Café Filosófico. Quanto ao rádio sou ouvinte fiel da Rádio CBN.

- Livro, DVD, CD, cinema ou eletrônicos (e-book / audiobook, playlist, streaming, etc)?
R – Livros sempre e para sempre! (risos). Sim, ainda faço uso do DVD para as obras primas e os clássicos do cinema e bem como acesso a Netflix – algumas séries e filmes – mas não gosto da leitura de e-books. Há uma diferença marcante entre a leitura de livros no papel e na tela do Kindle. Uso, sim, o tablet para ler os jornais, artigos, ensaios, crônicas, ou seja, textos que não sejam muito extensos ou volumosos. 

- Uísque, tequila, vinho, cerveja, gim, dry martini, conhaque ou água?
R – Sou abstêmia. Não gosto de bebidas alcoólicas. Então, água! (risos). Mas não sou de todo santa (risos): amo o cigarro. E o amarei até o fim!

- Um filme que te marcou.
R – “Mon Oncle”, de Jacques Tati. Assisti-o aos oito, nove anos na companhia do meu pai, no Cine Pathé, na Savassi, em Belo Horizonte. Depois, revi-o na adolescência e, sequencialmente, nas fases de juventude, idade adulta, maturidade, tendo repetido a experiência agora na velhice. Para mim, “Meu Tio” é o clássico dos clássicos. Inesquecível. Primoroso. A cada vez que o assisto mais fascinada & hipnotizada eu fico!

- Um escritor brasileiro atual que vale a pena...
R – Uau! São muitos! Difícil seria destacar somente um... Cito alguns que neste exato instante me acorrem à memória: Laurentino Gomes, os biógrafos – amo o gênero! –, Fernando MoraisRuy Castro, Lira Neto, Mary Del Priori, Carlos Heitor Cony, Reinaldo Santos Neves, Francisco Aurélio Ribeiro, entre tantos e tantos outros, que aqui declino de elencar os nomes para não ocupar todo o espaço... (risos)  

- Um livro de publicação recente que você considera imperdível.
R – Sapiens – Uma breve história da Humanidade, de Yuval Noah Harari.

- Um crítico de cinema que tenha marcado época...
R – Gosto de dois: Rubens Ewald Filho e Amylton de Almeida. 

Uma referência em termos de liderança política (local, nacional ou internacional).
R – No atual cenário político que se desenhou no mundo ocidental em passado recente, eu destacaria e realçaria o brilho, a inteligência, o equilíbrio e a firmeza na condução segura dos destinos do seu povo, da chanceler alemã Angela Merkel – na minha avaliação, a única que fez realmente jus ao título de ‘estadista’ no conturbado tempo presente, caracterizado por céleres e surpreendentes mutações que, suspeito, constituirá, em breve futuro, um novo marco a ser inserido na Linha do Tempo Histórico. Em termos locais, continuo achando o crítico, jornalista e dramaturgo Amylton de Almeida e a professora Márcia Barros Rodrigues (da UFES) excelentes referências não políticas, mas sociais e intelectuais em direção ao pensamento sociopolítico.

- Você esteve entre os pioneiros do jornalismo capixaba, foi a primeira âncora na TV e estrelou os primeiros programas de entrevista, sem falar de seu protagonismo também no rádio. Sendo mulher, jovem e atraente, foi assediada alguma vez nas redações?
R: Nunca, ou melhor, não que eu percebesse. Falo de assédio sexual, porque o moral eu nunca tolerei e resolvia na hora. Detesto o que não é gentil, cordial ou educado. Então, nessa parte, em mesma definia as regras e nunca as infringia e nem deixava que o fizessem comigo. Em termos sexuais, isso não era diferente. Sempre coloquei meu profissionalismo e minha liberdade acima de tudo e o fato de meu empenho resultar em certa competência, isso afugentava os homens. Os homens têm medo de mulheres independentes. Isso fez com que eu nunca sofresse “exageros” nas abordagens. Só homens especiais têm coragem de se aproximar de alguém como eu (risos). Até porque, face à minha voz e ao meu modo privativo e mesmo incisivo de ser, creio que isso intimidava qualquer forma de assédio em âmbito sexual.

- E fora do ambiente de trabalho?
R - Na minha vida pessoal tive, sim, tanto de homens quanto de mulheres. E os tratava com igual educação. Todo mundo será bissexual em determinada hora da vida e alguns, ao descobrirem isso, o serão para sempre. Nunca olhei o sexo com preconceito. Nem as pessoas por decorrência de suas ambições sexuais, seus desejos e mesmo suas taras. O ser humano é singular e tem uma vida existencialmente complexa, por que não dar a cada um o direito de ser feliz como queira? Quantos não amargam no desprazer do medo de serem eles mesmos por pressão social, religiosa, política... sei lá? No Japão, onde trabalhei, chamava muito a atenção por ser loira. Batia fotos com muitos japoneses e japonesas, tanto no trabalho quanto nas ruas. Naquela época, o país não era um destino turístico aberto e por excelência como nos últimos vinte anos. Loira por lá, nem as japonesas mais ousadas. Alguns até se insinuavam para mim, mas daquele jeito tímido e muito educado do japonês, então eu fingia que não entendia e ficava tudo certo. Ate porque eu mascava no idioma e não entendia mesmo! (risos)

- O que acha desse movimento em torno do assédio no trabalho? Face à pressão e ao risco de denúncias, o galanteio, o flerte e mesmo a velha “cantada” podem estar entrando em extinção?
R: “Darling” (chamamento comum para os amigos), sabe aquela coisa de “nada em excesso”? Por um lado, há os que ultrapassam os limites e, vamos ser claros: até mesmo adentram ao universo do considerado libidinoso. Então, há de se definir um meio de frear esses tipos. Por outro lado, começa-se a glamourizar o assédio, o que acaba gerando visibilidade para alguns que denunciam e outras vantagens para outros. Seja como for, usar a posição que se ocupa para tirar proveito moral ou sexual dos que estão em posições de desvantagem (subalternos, pacientes, menores, etc.), além de ser um crime, é prova da incapacidade da pessoa em termos de sedução.  

- Percebe alguma evolução na abertura das cabeças a esse respeito?
R - Hoje tudo está tão aberto e até mesmo mercadológico, que realizar fantasias sexuais já tem até aplicativo específico para isso. Para que se expor ou entrar em conflito com a lei? Mas, venho de um tempo em que flertar, insinuar, usar armas leves de sedução era possível sem que se confundissem as coisas. De um lado, há o assédio em si. De outro, deve ter um monte de gente doida para se manifestar assertivamente, como antigamente, mas que teme os rigores da lei até para uma abordagem educada, mas direta. 

- Como vê as iniciativas e ideologias que defendem a mulher em cargos de liderança?
R: Como eu nunca precisei disso para conquistar os cargos que ocupei, achava estranhíssimo. Depois comecei a perceber que diante da predominância masculina em todas as esferas, precisava de algo para chamar a atenção para a questão. Tenho certeza que muitos líderes sabem que a importância da competência independe de gênero e que essa consciência está se ampliando. Veja que a quantidade de mulheres na gestão está crescendo e em outras posições e esferas também. Vejo isso da mesma forma quanto às cotas de etnia e coisas afins. Acho que se isso tiver um tempo definido para acontecer e depois parar, me parece razoável. Até se equilibrar a mesclagem, se esta for justa e com base em critérios bem definidos de capacidade e justiça. Porque essa cultura do coitadinho também não ajuda em nada, nem no desempenho e nem na felicidade do privilegiado. 

- O jornalismo contraiu matrimônio com a publicidade sob as bênçãos do capital. Concorda?
R: Claro que concordo. Isso começou um pouco antes do final da minha carreira na televisão. Às vezes penso que o jornalismo, em maior grau o televisivo, acabou mesmo. Na verdade não contraiu matrimônio, ele se fundiu com a publicidade. Um diretor de cinema vai vender mais que um editor em um programa de notícia, pois a coisa parece ter virado entretenimento e não serviço de informação. Então, concordo sim. A publicidade se misturou de tal forma com a imprensa que já não sabemos onde uma começa e a outra termina. Nem onde isso vai parar, pois o hipercapitalismo, que é a faceta mais cruel do capitalismo informacional, transformou tudo em mercadoria.

- Muito antes do distanciamento social se tornar regra, você fez do isolamento uma opção de vida. Considerando que “o homem é um ser social”, você vive bem sozinha?
R: Olha, na verdade, essa minha solidão é relativa. Tenho plantas, livros, discos, relógios e eu mesma. Tinha animais antes, mas morreram e evitei sofrer de novo. O professor, filósofo e linguista Karel van den Bergen tem uma frase perfeita: “você só estará sozinho se não tiver você por perto”. Também tenho um telefone fixo e um celular. Ah, e a internet! Ligo e recebo ligações de amigos e familiares frequentemente, se eu quero. Envio o recebo Zapse-mails e anexos, se eu desejo. Saio de vez em quando e vou aos meus locais preferidos, encontrar pessoas que gosto. E quando me sinto insegura com qualquer coisa, tenho uma irmã (Mirian Bilich) com quem tenho total afinidade afetivo-intelectual e uma espécie de cumplicidade. Então, para usar termos de mercado, ela acaba sendo minha “confidente” e “conselheira”, mesmo sendo mais nova, ou seja, minha (arghhh!!!) coaching! (muitos risos). Só preciso conseguir dizer a ela que a amo, pois o afeto na minha família é uma coisa complexa. Sentimos mas não demonstramos por via padronizada (declarações, beijos, abraços, etc). Também tenho uma afinidade e uma amizade de trinta anos com um ‘filho herdado’ (o amigo Sidemberg Rodrigues); sem esquecer a sintonia intelecto-espiritual com meu brilhante neto Leonardo, além do amor incondicional e da admiração pela minha sobrinha-neta Lavínia. Também tenho afeto por outros familiares, amigos e congêneres. Então, tenho esses portos-seguros, entre os quais a Mirinha, como eu carinhosamente a chamo, que é a personagem central. A questão é: gosto de ler e de ouvir música; de pensar e de ficar quieta; em silêncio total. E se houvesse alguém 24 horas comigo, seria um inferno (risos). Já imaginou? Aí entra esse lado incrível da solidão que é a liberdade. Sempre fui e serei livre. E se uma doença ou qualquer coisa me limitar, peço a eutanásia (risos). Depender de alguém é tudo o que não quero, se for em longo prazo, pior. É possível ser muito feliz sozinha. E sou. Sei que nada é meu. Nem as relações e tampouco os meus pertences, que ficarão aí depois que eu virar “adubo orgânico” (risos). Por isso, lavrei um testamento e também expressei (verbalmente) aos que confio qual deverá ser o destino do que ficou fora do texto.  

- Você já amou alguém verdadeiramente? E essa opção de estar sozinha não esbarra em uma impossibilidade a esse respeito?  
R: Absolutamente. Amei os que menciono acima! Na verdade, em termos afetivos - com parceiros - o máximo que tive foram (talvez) paixões. Ou ilusões como no caso do homem com quem tive uma filha. Apaixonei-me pela imagem que idealizei dele (um guerrilheiro inteligente e de ótimo sexo hahahaha). Enganei-me em tudo! Nem beijar sabia (risos). Depois da gravidez e etc, encerramos a relação. Em absoluto eu vivo “sozinha” por falta de uma companhia ideal. Ao contrário disso, vivo bem comigo mesma e me basto, considerando a rede de amigos e parentes que mantenho próximos. Nesse período que atravesso agora, minha filha e eu estamos tentando resolver a questão de nossa distância circunstancial e estou até me redimindo como mãe (risos) (acho kkkk). Claro, e ela como filha. Mas, como estou em vias de tomar assento no bote do “barqueiro da morte”, não poderia deixar pendente essa importante questão, vez que estou tentando resolver todas. Bem da verdade, o fato de ter vivido como eu gostaria me deu esse prêmio de ter relativa paz nesse momento de desligamento. Claro que a questão não é tão simples, mas tenho tentado dissolver os nós antes de ultimar meu desligamento. E essa parte do afeto é importante, até porque além da filha que tive, tenho netos, sobrinhos, irmãos e amigos que me fazem crer que me amam. E eu a eles! 

- Afinal, onde mora a felicidade?
R: Na humildade de nossa pequeneza e no orgulho de nossa grandiosidade, dentro de cada um e também em todos os trajetos. No início e no fim dos percursos ela é muito volátil, quase não existe. Ela é uma energia de movimento, então estará sempre entre o começo e o final de tudo (ciclos, jornada, projeto, vida... etc). “A felicidade é o caminho”, como já disseram.

- Qual a conta a ser paga por se viver em um “presente contínuo”?
R: Falta de paz, doenças psicossomáticas e a ansiedade, da qual todos padecemos com a aceleração do pensamento e das expectativas (boas e más). Viver em função do que ainda não aconteceu é patológico. Principalmente por se viver em busca de algo, sem o desfrute das conquistas e sem profundidade nas relações e nas idealizações. A superficialidade é um efeito colateral bastante nefasto também desse embarque no presente contínuo. As pessoas estão fotografando e divulgando o momento presente sem vivê-lo realmente, integralmente.

- O que tem a dizer sobre a transição do capitalismo informacional para a economia digital ('hipercapitalismo')?
R: Estamos correndo como loucos sem saber onde chegar e o pior: sem saber quem somos. A lógica do mercado puxa o foco para fora, para o lucro, para a acumulação… ‘Time is money’, lembra disso? (risos). Então, não se para, nem para se contemplar, desfrutar e menos ainda para se oportunizar um olhar para dentro e se perguntar: EU sou feliz de ser eu? Quanto falta para EU decolar da Terra? Está valendo a pena? Estou vivendo como EU gostaria?

- Redes sociais e algoritmos fisgando desejos e induzindo comportamentos na sociedade do espetáculo. “O fim do mundo está próximo”? (Contraponto com a célebre frase de Amylton de Almeida)
R: Está! Apocalipse real. Tudo isso arrasta a análise para a falta do autoconhecimento. A manipulação dos algoritmos por trás dos aplicativos e a preocupação frequente com a opinião do outro jamais deixarão um indivíduo bem com ele, com o outro e com o meio. Tudo é imagem, mercadoria e embalagem. Até a busca pela felicidade. Mas há algo também estranho acontecendo. As pessoas precisam dizer publicamente que amam as outras - família incluída - para ver se elas exorcizam a própria frieza e acreditam no que falam/sentem. Veja nos perfis públicos das redes “sociais” milhares de exemplos dos que dizem “te amo” com a mesma facilidade com que “cancelam” o outro - família novamente incluída. Ou simplesmente dão parabéns para filhos, cônjuges, pais, etc. ali naquele espaço público de gente estranha muitas vezes, para todo mundo ver que estão sendo afetivas. Que medo é esse de ficar sem o olhar do outro e de sua aprovação? Onde isso vai chegar?

- Há tempos não se compõe uma grande sinfonia; nem surge uma admirável e peculiar pintura, tampouco uma inesquecível escultura. Falta genialidade ao século XXI?
R: Absolutamente! Há genialidade em muitos, sendo que as criações passam por outros caminhos que não somente a arte. Mas, acho que até os artistas estão tão preocupados com as curtidas do Facebook e os olhares do Instagram com foco nas centenas de milhares de “seguidores”, que talvez não apareça mesmo um novo Moisés (de Michelângelo) ou uma Mona Lisa (de Da Vinci), que requerem tempo, pensamento complexo, técnica e dedicação para que sejam feitos.

- Religião ou autoconhecimento? Por que o “ópio” ainda é a escolha de tantos? (Lembrando que em alguns países, os templos estão fechando ou sendo usados para outros fins por falta de fiéis, como na Holanda).
R: Já disseram que “o planeta tem duas coisas em abundância: água salgada e estupidez”. Como um povo alienado, com preguiça mental, manipulado e medroso, vai escapar dos que extorquem o bolso dos infelizes e ingênuos? Então, os caça-níqueis continuarão se enriquecendo em nome de Deus. À medida que a pessoa se torna protagonista de sua própria história - e isso só acontece através do autoconhecimento - ela vai vendo que religião é crença e que bem-estar e paz são outra coisa, muito distante do medo, da culpa e dos dogmas das igrejas. Então, opto pelo autoconhecimento que é muito mais libertador, embora seja penoso em certas etapas.

- Pátria, Religião, Família... há o ensaio de uma volta ao passado? Por que acredita que isso esteja acontecendo?
R: Lanço mão da meu mineirês (morei em Minas Gerais) para começar a responder: “dou conta disso não”, “me dá uma preguiça!!” (risos). Além de o planeta ser cíclico em todos os aspectos, inclusive nas alternâncias de direita e esquerda nas forças político-ideológicas (e, claro, religiosas...), as pessoas estão bombardeadas como nunca com informação de todos os tipos, inclusive falsas (fakenews), o que as confunde e amedronta. Então se revisita o desejo infantil de proteção e tradicionalismo, porque as pessoas acham que aquilo deu certo e que o novo e o diverso são ameaças, o que nunca foi verdade. Mudar, variar é uma questão de sobrevivência. Nada é 100% suficiente e definitivo! É preciso evoluir, dosar extremos, procurar, pelo debate, o caminho do meio. A política, seduzida pelo mesmo capital que fisgou as demais instituições e as empresas, perdeu-se de sua missão. Aí, resultou nessa mediocridade que temos visto, quando os religiosos também tiram proveito econômico da situação, assim como os políticos e ideólogos em geral.

- Você acredita que existe o livre arbítrio? Que podemos decidir/definir nossas vidas de acordo com os nossos sentimentos/convicções, ou somos reféns de um conceito social/religioso/familiar que nos tolhe de tomar as decisões que pretendemos?
R: Não entendi bem porque livre arbítrio é um conceito esotérico, mas trazendo isso para a Terra (risos) e sem mantras (muitos risos), claro que é possível construir nossa vida da forma como gostaríamos. Não há limitação nenhuma, pois quem vive as delícias e dores do que quer que seja é o próprio indivíduo. Se não está bem da forma como se é, faz-se necessário buscar autoconhecer-se para identificar o que lhe é prazeroso e o que não é. Ou seja, independente das pressões sociais, que são muitas, podemos sim seguir nosso rumo tendo a vida (real) que queremos, sendo quem realmente somos - autênticos e resolvidos. Ou morreremos sem termos vivido!

- Há uma razão de ser para os acontecimentos ou tudo é efeito do acaso? Podemos mudar positivamente o rumo das nossas vidas mesmo não crendo em algo transcendental?
R: Uma coisa é a mudança de curso da vida de acordo com o que decidirmos e a outra é a “sincronicidade” de Jung ou a ideia de Schopenhauer de que “tudo o que acontece, acontece necessariamente”. Tudo isso é filosófico demais e não há um consenso. Mas não tenho dúvidas de que há mais coisas entre o céu e a Terra a serem descobertas pela ciência e a tecnologia do que imaginamos. Isso deve ajudar muito a desmistificar a ideia de transcendência, como a chance de uma explicação por via da física quântica. O universo é por demais complexo, assim como a relação mente/cérebro. Aguardemos, pois! Viu? Já considero a transcendência uma possibilidade e isso foi uma mudança radical no meu pensamento. Evoluamos! (muitos risos)

- Quando você sente que o navio da sua vida está cheio e o peso são também pessoas próximas, como fazer para esvaziá-lo sem magoar aqueles que você considera?
R: Cargas ao mar!!!!! Aqui me socorre a psicanálise: o sujeito deve ser a prioridade. Se algo ou alguém está infeliz, independente de suas relações que poderão ser quebradas e também as perdas que inevitavelmente irão acontecer, essa pessoa tem de buscar o máximo possível viver sua bem-aventurança (lembrando aqui o estadunidense Joseph Campbel), porque encontrar meios para uma vida feliz deve ser a busca de todo mundo. Doa a quem doer. Isso porque sofrer evitavelmente é burrice, já que tudo sempre se acerta. Pode levar tempo, reorientação de visão, necessidade de aceitação e até mesmo resignação. Até porque a passagem por esse planeta é curta demais e não se sabe depois o que acontece no além-túmulo. Só Tánatos! (Deus da morte). Então, jogamos fora a vida que temos? Tudo deve ser inteligentemente relativizado e as decisões precisam ser tomadas na hora e da forma correta. O resto podem ser apenas cargas que se fazem intencionalmente pesadas demais.

- Se você pudesse mudar o mundo, por onde começaria?
R: Não vou cair aqui naquele clichê em que o Gandhi é citado, embora o ache importantíssimo: cada um mudar dentro dele mesmo, operando em si as mudanças que quer ver no mundo… isso é utópico. Tinha de mudar todo mundo ao mesmo tempo e isso não vai acontecer. Tem é que mudar os políticos. Eles são a escória que causa sofrimento desnecessário. Caráter. Veja as civilizações avançadas como os nórdicos (Escandinávia). Funciona muito melhor a engenhoca social quando os que decidem pensam no conjunto da obra e retiram o foco de seus umbigos, com baixíssimos índices de corrupção e muita vergonha na cara. E respeito pelos outros. Se eu pudesse mudar algo, seriam eles, os políticos. Com bons gestores públicos (ética) e políticos de caráter (será que encontraremos, “Darling”? hahahaha) o resto será decorrência, porque a pressão da integridade é perturbadora quando emerge de uma ‘cultura’. O Japão também não pode ser esquecido, pois a ‘cultura da vergonha’, embora bastante excessiva e cruel por lá, faz a camada decisória de interesses públicos sambar na chapa quente da ética, caso desviem seu foco. Claro que nada é perfeito! Mas eu mudaria essa camada (deputados, senadores, presidentes e tudo o que gravita à órbita da política). Sonho...

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