Zeitgeist, de Jeanne Bilich

Marcela Guimarães Neves

 

Pausa. Além de movimento, o corpo humano precisa de descanso e de alimento. Elementar, meus caros leitores? Nem tanto. Como revela, de um modo “tapa na cara”, o brilhante filósofo Byung-Chul Han, estamos cada vez mais imersos numa existência econômica. Acabaram-se as preocupações coletivas, as ideias de construção de uma sociedade mais livre, justa e igualitária. A inquietação gira tão somente em torno de atingir metas, dobrar metas e inventar mais metas extenuantes e alienantes, para a exibição, presencial e sobretudo virtual, de um desempenho marqueteiro do “seja a sua melhor versão.”

E todos os dias engolimos essa pílula fake, o soma do nosso admirável mundo novo. Na atual “happycracia”, isto é, na nossa fábrica cotidiana de “cidadãos felizes”, tal qual denuncia a socióloga Eva Illouz, a lógica da produtividade parece estar consumindo a nossa alucinada vida ancorada no slogan “produção-consumo-ostentação”. “Vidinha besta, vidinha chinfrim...”, como brada a sagaz cantora e compositora Rita Lee.

O tique-taque imaginário de um relógio virtual soa, inaudível, a hora do almoço. Rodopiando no turbilhão da rotina, tal qual uma Dorothy transportada do Kansas para os ladrilhos amarelos de Oz, sei que necessitarei fazer uma espécie de feitiço do tempo, um ritual iniciático para Cronos. Preciso fatiar sessenta minutos em duas partes iguais. A primeira fatia vai para o físico. Tenho meia-hora para degustar as iguarias do Bistrô Glória, no Centro de Vitória (recomendo!). Com uma técnica express de mindfulness (mais um paradoxo da hipermodernidade...), dou plena atenção às poucas garfadas. A frugalidade da dieta auxilia o processo de mastigação concentrada. Já a segunda fatia, esta reservo para quitutes do espírito, uma vez que a mente laborativa é mais bem guiada quando a alma está lúcida, desperta e devidamente alimentada.

Saibam que não escondo de vós, ó diletos leitores, nenhum de meus contentamentos literários, confesso-os de pronto. E o que vos conto agora é quase um fuxico. O talentoso acadêmico Marcos Tavares presenteou-me com um verdadeiro tesouro: o livro Zeitgeist: Espírito do Tempo, da grande mestra Jeanne Bilich. A leitura dessa esplêndida coletânea de crônicas literárias/jornalísticas me proporcionou, até a última página (que aliás relutei para encerrar), trinta minutos diários de beleza filosófica, de lucidez inconteste e de cultura vastíssima. Zeitgeist evidencia a relevância do aforismo platônico segundo o qual “o conhecimento é o alimento da alma”. De fato, não há melhor nutrição para as virtudes humanas do que o saber.

Pausa. A relatividade de demi-heure da minha concentração literária deixaria Albert Einstein com os cabelos ainda mais revoltos. Como o monstrengo Cronos nos devora a vida quando queremos que ela pare, congele, não avance! Diariamente, pedia mais minutos, mais segundos, para absorver um pouco mais desse delicioso caldo cultural, que eu sorvia com um deleite muito além dos sentidos. Isso porque Bilich (pasmem os Numes!) nos deixa à vontade para engolirmos, ou engasgarmos com, os comandos de um mundo cada vez mais veloz, cada vez mais egoico e cada vez mais perdido no tempo e no espaço.

A grande dama do jornalismo capixaba, num tom de conversa cordial e instigante, põe-nos a refletir sobre o nosso “presente contínuo” (p.17), sobre a liquefação baumaniana de nossas certezas; a angústia coletiva face ao inexorável envelhecimento do corpo (p. 19); o medo da morte, que a autora parece não sentir, porquanto Abigail (p.35), um crânio encontrado numa praia, alerta-a sempre: memento mori!

Textos críticos e espirituosos, como “Odeio telemarketing” (p. 51), “Ruído na comunicação” (p.57), “Descompasso pós-moderno” (p.73), deixam à mostra as pedras na sopa de letrinhas da nossa pós-modernidade ensandecida. Sofremos todos com os incômodos relatados pela escritora; ou seja, com os insistentes apelos dos call centers; com a apatia interpretativa da plateia diante de cenas icônicas de filmes clássicos; com a deficiência cultural de certos “agentes da cultura”... Enfim, a luta para manter o conhecimento fervente no caldeirão desta sociedade tecnologicamente burlesca e decadente.

Tendo a advocacia como primeira graduação, a autora decerto conhecia o célebre adágio jurídico tempus regit actum, o tempo rege o ato, ou seja, a ideia hegeliana de que o espírito do tempo guiaria os atos de uma comunidade. Pois, segundo Bilich, tal sentença seria decisiva para a compreensão dos nossos condicionamentos cotidianos. Seus pensamentos nos conferem elementos para sair, a nado olímpico, deste “Radeau de la Méduse”, desta Balsa da Medusa, visto que, como no quadro de Théodore Géricault, estamos numa coletividade de pessoas absurdamente cansadas e sem rumo.

No entanto, sobre as areias da ilha de Vitória, como náufragos desorientados, acostamos para, com sede de um futuro menos ácido, beber dessa profícua fonte de conhecimento. Jeanne Bilich foi uma verdadeira feiticeira, uma sábia consciente das “poções mágicas” para nos tirar da cegueira de uma vida sem bases sólidas acerca de tudo aquilo que vai além da impermanência dos modismos e das pesquisas de opinião.

O que deve permanecer? A autora responde por meio de terapêuticas conversas com seus leitores. Devem permanecer, como a imponência de um rochedo a cortar “ondas” temporárias, a amizade (como a que festejou nas crônicas sobre os mestres Amylton de Almeida e José Roberto Santos Neves), o prazer da dúvida investigativa, a contemplação das boas obras da humanidade, a preservação do meio ambiente, entre outros valores fundamentais. Enfim, é em tudo isso que devemos ancorar a nossa existência, para que possamos absorver a sobremesa da vida, a sensação de saborear os melífluos ensinamentos da Natureza, bem como as lições de todos os grandes mestres da História, que puseram, cada um a seu modo, uma cereja a mais no banquete de Trimalquião da existência coletiva. E Cronos que espere lá fora, ao lado dos outros Numes!

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim