Neste algum tempo em que acompanhamos, no que nos é possível, a literatura não apenas produzida no nosso rincão, mas, também, em outros quadrantes deste imenso país, chegamos à conclusão de que, basicamente, duas temáticas têm despontado como principais na pena dos muitos autores contemporâneos: uma, proveniente de um engajamento político, fruto das tensões vividas sobretudo nestas épocas de retorno aos ideais de um obscurantismo que se pretende calar vozes já tradicionalmente à margem da sociedade – e que têm na literatura um importante vetor de expressão, o que torna escritos e escritores, potencialmente, pessoas perigosas, combatidas; outra, bem mais intimista, mas não menos engajada, que pode ser percebida como uma “poética do corpo”, sendo, portanto, somática, e denotando um “movimento para dentro”, logo, também, ontológica.
Caê Guimarães é capixaba por adoção, nascido no Rio de Janeiro no ano de 1970. Jornalista, roteirista, poeta com obra lida, resenhada e até traduzida, reconhecida dentro e fora do seu Espírito Santo de adoção, leva ao lume, em 2020, o seu primeiro romance, Encontro você no oitavo round, cuja publicação foi fruto de um prêmio, o Sesc de Literatura, tendo publicação nacional pela Editora Record. O livro, narrado em primeira pessoa, conta a história de Cristiano Machado Amoroso, um pugilista em final de carreira que se encontra em um dilema: entrega ou não a sua última luta?
Nossa leitura dá conta de que Encontro você no oitavo round se encaixa no rol dessas “poéticas do corpo”. Necessário dizer, aqui, que, mesmo uma prosa longa pode encerrar uma poética, nos moldes do que um Octavio Paz nos preconiza, como um sublime, um inexplicável que mexe com as nossas sensações, que pode ser encontrado em qualquer corpus que não somente o da poesia. Mister afirmar, aliás, que o autor do livro em comento é poeta de escol. Caê, então, dá azo para esta poética, quando cria um pugilista que também é escritor. Tem-se, logo, um jogo de contrários, tão caro à tradição literária: bruteza e leveza, força e mansidão. Um “pugilista escritor”, aparentemente, encerra em si uma contradição que nos remete à condição humana, ao homem e seus tantos contrários, mas que, também, flerta com a noção de performance, encontrada na obra de Judith Butler, causando, portanto, estranhamento.
É esse mal-estar, em nosso ver, aquilo que permeará toda a obra. Guimarães deslinda o fio condutor de Amoroso com alguns vaivéns, numa tentativa de nos mostrar, a todo tempo, o quanto aquele personagem se sente desencaixado. Ele é o “homem fragmentado” da nossa civilização atual, cujos contornos já teriam sido dados, tempos antes, por um Freud, em seu O mal-estar na civilização: a relação difícil com o outro humano, consubstanciado na luta, no macerar o corpo (outra fonte de mal-estar), o sentimento de não pertencimento (um dépaysement). Cristiano, em seus solilóquios, sempre fala de Esther, que acaba de tornando uma musa, um arquétipo dessa dificuldade de se estabelecerem relações, tal como acontece com seu empresário e os tantos outros personagens da trama. Aqui, no entanto, há uma diferença: estes pertencem ao universo do pugilismo, portanto, da luta, da bruteza, da competição. Eles são, de fato, a imagem do mal-estar, daquilo que só pode ser resolvido por meio da violência.
Há, no entanto, outro paradoxo na obra de Caê: a forma poética com que o autor descreve o boxe. Ele próprio, amante da modalidade e praticante de artes marciais (já chegou a participar de campeonatos de judô), mostra não só o esporte mas, mais tarde, na parte final do livro, quando, de fato, há a luta (e o clímax) que definirão o destino do protagonista, uma poética que nos perturba: mesmo uma aparente brutalidade deve, sim, ter regras e pode, sim, ter uma poética. E aqui, mais uma vez, o corpo (aliás, para nós, em todo o livro): surrado, marcado, machucado. No começo da obra, Cristiano reclama de um zumbido. Esse pequeno “mal-estar” continua num crescendo, até o desfecho da trama. O corpo do personagem é, portanto, um símbolo de decadência, de como o humano pode ser mercantilizado nesta nossa “sociedade do espetáculo” (para não deixar de citar Bourdieu), e de como, no fundo, somos todos vítimas de uma luta sem escrúpulos, que nos leva a rounds extenuantes, até o final.
Anaximandro Amorim, professor e escritor, membro da Academia Espírito-santense de Letras e mestrando em Estudos Literários (UFES).
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.
Editor responsável: Anaximandro Amorim