Uma leitura de Fútil: a poesia
de João Martins em 2021

Renan Peres

 

A opção pela leitura do (r)e-book Fútil, de João Martins, se justifica por ser uma extensão do e-book Fútil e por conter as mesmas características, além de ser um compilado melhor que permite uma apreciação mais abrangente. Além disso, teve, antes de tudo, um critério afetivo. João foi meu aluno em um cursinho preparatório para o Enem. Eu dava aulas de Literatura. O cursinho é um projeto social mantido por educadores populares voluntários. Era o meu primeiro contato com a sala de aula como professor e eu costumo dizer que o João é um dos meus orgulhos de quando eu ainda não sabia lecionar. Lembro bem de ouvir, interessado, ele comentando suas impressões de leitura de Fahrenheit 451, e de ter ficado impressionado com o potencial de sua leitura. E depois lembro a felicidade de encontrá-lo pela primeira vez nos corredores da Faculdade Saberes como meu calouro. João foi também um dos primeiros estudantes que tiveram aulas comigo e que eu pude ver no ensino superior.

São fatos que julgo importantes porque esse percurso influencia diretamente na minha leitura. Acrescento que depois de ter encontrado o João no corredor da faculdade descobri o seu trabalho com a poesia. Versos potentes com reflexões sagazes que ele recitava, impondo, com a sua voz, um ritmo seu inspirado nas manifestações da arte poética do Slam. A atuação de João, em 2016, na escola Almirante Barroso, também é um fato que merece destaque: era o período de ocupações das escolas por estudantes secundaristas que exigiam educação pública de qualidade, dentre diversas outras reivindicações. Julgo um fato importante porque demonstra seu posicionamento e compromisso diante de causas sociais.

Hoje, com a leitura do Fútil, sinto que fico mais realizado enquanto admirador da poética produzida por João Martins. Trata-se de um livro em formato digital, uma produção independente, vendido por um valor simbólico. É um livro que possui textos em versos e em prosa, poemas de características visuais, reflexões que passam pelas idiossincrasias do cotidiano, como se fossem escritos para que todas as pessoas compreendessem. A primeira impressão é a da acessibilidade. No geral, são textos de fácil compreensão que poderão ser fruídos por pessoas de todas as idades. Também há em muitos deles uma aproximação com a oralidade. Em vários momentos, pude conceber Fútil ecoando como uma conversa em que a tríade autor-obra-leitor se consolida “Bradando a voz / Buscando o ouvinte” (p. 3), e a ferocidade do texto surge ora como um grito, ora como necessidade de vencer adversidades e manter firmes os pés no chão: são as várias formas da resistência.

É uma característica marcante da literatura produzida por João Martins o trabalho com a sonoridade desenvolvido por meio de rimas e aliterações. São elementos composicionais de sua escrita que atuam para transformar o cotidiano em poesia. Em “Futebol no xadrez”, a prosa parece jogar se armando de poesia e é essa jogada de ritmo bem marcado que potencializa o erotismo do texto:

Se eu cheguei ao trono foi porque derrubei o rei do cavalo. Tombei sua torre e a rainha ficou exposta. Sua resposta? Foi entrar no meu quarto, ficar de quatro, em plena quarta, era dia de jogo. A gente bateu um bolão. Foi jogo duro, teve até prorrogação. De premiação, ela teve seu melhor orgasmo, chegou a molhar o colchão. (p. 7)

No trecho, é possível perceber que as rimas trabalham como se produzissem ecos. Também o ritmo, marcado sobretudo pelas aliterações em sons de T (trono, tombei, torre, teve, até), de K (cavalo, ficou, quarto, ficar, quatro, quarta), de B (derrubei, tombei, bateu, bolão), de P (porque, exposta, resposta, plena, prorrogação, premiação) e de X (chegou, colchão), e pelas rimas em EI (cheguei, derrubei, rei, tombei), POSTA (exposta, resposta) e ÃO (bolão, prorrogação, premiação, colchão).

Essas mesmas características podem ser notadas em outro poema, no qual parecem rimar “mercadoria” e “teria” e os sons consonantais de R e T se evidenciam:

O AMOR
NÃO FOSSE
MERCADORIA BARATA

VOCÊ TERIA
TODA FORTUNA (p. 11)

Aqui, dividido em 5 versos e 2 estrofes, o poema toma forma a partir de um período composto por subordinação adverbial que expressa condição, e cuja conjunção subordinativa condicional sofre uma elipse – Se o amor não fosse mercadoria barata – para indicar a condição necessária para que o elemento principal, o amor, pudesse ser desfrutado em sua completude – Você teria toda fortuna. Esse sentido se completa estendendo a análise para os dois verbos do poema, fosse e teria. O primeiro, fosse, no pretérito imperfeito do subjuntivo, exprime uma probabilidade que está condicionada a algo; já o sentido do verbo teria é complementar porque está conjugado no futuro do pretérito do indicativo, que também indica uma ação que se condiciona a outra.

Quanto ao aspecto de conversa, a linguagem dos textos de João Martins assume, em vários momentos, a oralidade típica da informalidade cotidiana. Essa característica se manifesta por meio das orações construídas com auxílio de expressões corriqueiras, figuras de linguagem de uso comum, gírias, como em “Leve tá. Vai que pá / Não teme o arrependimento / Amanhã não vai lembrar” (p. 5), ou ainda a expressão informal que indica comparação em “Rótulos, design, imagem / É tipo julgar o livro pela capa” (p. 5).

Por fim, para pontuar apenas alguns pontos gerais do (r)e-book, destaco que por trás da aparente simplicidade da literatura de João Martins estão várias reflexões cruciais para a compreensão do sujeito enquanto cidadão do mundo. Isso se dá pelo desenvolvimento das temáticas que direta ou indiretamente lidam com assuntos universais e com aspectos individualizantes. Os textos de João também apresentam variadas referências que apontam a formação pessoal do escritor; os nomes vão desde artistas que se encontram às margens até aqueles já consagrados no cenário nacional. A linguagem, muitas vezes oralizada, permite a declamação ritmada do texto, o que marca a influência do Slam na escrita.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim