Território inominado, romance de estreia da escritora e professora capixaba Fernanda Nali, foi publicado em 2018 pela editora Cousa. A obra foi aprovada no Edital Secult/Funcultura n° 007/2017: Seleção e incentivo à produção e difusão de obras literárias inéditas de autores residentes no Espírito Santo.
Uma voz feminina dá o tom desta prosa poética e conduz o leitor por um labirinto de rastros, fragmentos, vestígios de aves, rios, pedras, desejo e vazios. Um território sem bordas, fragmentado e “aparentemente” caótico. Existe, pois, temática mais contemporânea? Ouso dizer que neste complexo e denso território, faz-se necessário ao leitor assumir certa “posição feminina” de leitura, entendendo tal posição como correlata ao feminino que acolhe ambiguidades, torções e paradoxos. Perde aquele que busca compreender o texto. Antes, deve deixar-se levar pela fruição das palavras, embalo de ondas, correnteza de rio, por vezes suave, por vezes caudaloso e turbulento. “Tudo se fragmenta. E a revoada se esgarça, desfazendo a trajetória retilínea. Registro um desejo de infância: alcançar.” (p. 9)
Nali vai costurando essas bordas por meio da escrita na tentativa de dar contorno a algo que toca o real impossível de dizer. Desenrolando o fio de Ariadne, passeia por entre-lugares. Seu périplo tem início com a colonização de um território ainda inóspito, habitado por “selvagens”, território brasileiro, território espírito-santense e chega à colonização dos corpos, igualmente inóspitos. Selvagem é o desejo, a pulsão, o gozo, a sexualidade, território tão “desnatural”.
Não me despe apenas o indumento, corpo com o qual me visto, mas também a côdea inconsútil, manguezal diário na fragilidade das minhas artérias e veias cobertas de litoral. Penetra a água deslizante do gozo germe com o qual te prolifera hospedeiro e habita o mundo; desnuda reentrâncias da casa que ergui delicadamente; dela desprenderá a paixão que reivindica a cópula e enquanto descobre o outro vê que encontra a si-árvore, madeira, centelha e repouso, muito mais humano. (p. 46)
Se a leitura deste território pressupõe uma “posição feminina” do leitor é justamente pelo que de feminino a narrativa evoca.
“Tornei-me mulher – peço de empréstimo esse verbo que já é seu simone – como orlando: foi e é no meio da narrativa. Me feriu longa e profundamente a percepção vagarosa de que, enquanto mulher e tão somente, eu não era tudo o que se fosse um homem a ser eu, seria.” (p. 72)
A psicanálise com Freud deu voz às mulheres consideradas loucas, as histéricas, cujos sintomas não decifrados pela medicina apontavam para o enigma da feminilidade. Lacan vai além e postula um gozo a mais, gozo feminino, não-todo inscrito na lógica fálica, aquele mesmo gozo enigmático pelo qual mulheres foram consideradas bruxas e agonizaram nas fogueiras. E não continuam agonizando? Gozo sobre o qual nada se pode dizer apenas sentir. Gozo do corpo, gozo místico.
Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta – isto ela sabe. Ela sabe disto, certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a elas todas. (LACAN, 1985 [1972-73]: 100)
Em seu Território inominado, Nali descreve, por meio desta voz feminina, o encontro, ainda que breve, porém intenso entre os sexos. No teatro, agora vazio, as significâncias caem uma a uma. Resta a nudez absoluta e o consentimento mútuo para vivenciar uma experiência jubilatória.
Se nada se pode dizer sobre o gozo feminino, seria possível dançá-lo? Nali responde lindamente: “E agora quase entendo menos pelo significado e mais por uma referência a um nome que assimilo, e rimos juntos, iniciando um passo de valsa [...]” (p. 90)
Li Território inominado acompanhada por Chico e Milton e se pudesse dançar este romance escolheria a canção que começa assim. “O que será que me dá/ Que me bole por dentro, será que me dá/ Que brota à flor da pele, será que me dá/ E que me sobe às faces e me faz corar [...] O que não tem descanso, nem nunca terá/ O que não tem cansaço, nem nunca terá/ O que não tem limite” [...].
Nem todas as armas e opressões poderão domar o desejo, a pulsão, o feminino que não cessa de se escrever. Uma mulher estaria mais próxima “do que não tem governo nem nunca terá/ O que não tem juízo”. Uma mulher é em seu Território inominado.
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. 2 ed. Rio de Janeiro : Zahar, 1985.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.
Editor responsável: Anaximandro Amorim