Simbolismo e experimentalismo radicais em Memórias de Minhas Carnes, de Camila Dalvi [ou Lidar com Carmen é uma questão de língua]

Rafael Muller

Plano de transcrição – v2, 18 out. 2022.

Para o encontro do Leia Capixabas de outubro com o gênero ensaio ou livre, eu escolhi o Memórias de Minhas Carnes, da Camila Dalvi, publicado pela Editora Maré.  Uma oportunidade única para poder tratar mais detidamente sobre a obra, já que, de fato, ela não parece se encaixar em um gênero específico. A autora dá um passo a mais em termos de liberdade: há seções que, sim, podem ser poesia, podem ser contos, crônicas. Mas não há só isso. E há, inclusive, textos que se iniciam com formas típicas de um gênero e, a meio caminho, transmutam-se. A liberdade, levada a sério, não é prender-se a gêneros intermédios, inclassificáveis, mas percorrer tanto os já categorizados quanto os não, sem grande atenção a fronteiras.

Camila Dalvi nasceu em Vitória-ES, é amante das artes e leciona Língua Portuguesa e Literatura, e é professora do IFES. Passando à obra em si mesma, alerto a todos já para a redundância: a frase que mais poderia falar é da ordem do já dito: “a autora dá um passo a mais”.

À primeira vista hão de se tratar de textos eróticos: é o que sugere a capa e o excerto selecionado para a chamada:

Passou a língua inúmeras vezes colhendo diligentemente as gotas de suor que brotavam de seu cenho de sulcos tensos. No percurso dessa colheita, ia proporcionando um efêmero amolecimento estriado em sua testa dura. Lambia o suor limpo, diria ele, aquele que brota depois do banho, na conjunção de corpos. E repousava, satisfeito de ser alimento. A sede da língua desarvorada matava-se assim, moto-contínuo, suor e língua. Era preciso ação, e essa não faltava. Talvez tenha sido essa uma de suas mini-eternidades.

Mas se se esperam textos com léxicos do campo do erotismo, deslocamentos de sentido das palavras para sugerir em vez de revelar, ainda que haja por lá, a autora não fica nas preliminares, comum aos erotismos cotidianos, mas chega ao ato com as palavras e nas mais diversas posições e ritmos - um texto muito musical também -: temos, por exemplo, coitos interrompidos, paradas bruscas no erotismo para segurar a tensão sexual antes do gozo. E tudo é avisado explicitamente (algo da teoria da pornografia?), anteriormente, num explicitamente implícito, com metáforas inusitadas, a mesma palavra metafórica em uso que pelo contexto desliza do ora sensual para o ora não. Carmem (nome autocunhado à narradora das peças) não se a pode segurar, como um corpo suado de sexo que desliza peles.

Com as palavras aqui dispostas como estão, dá para o leitor já perceber - se não deu, há de dar e agora esclareço - que a temática dos textos que sou será a que me ocorre: sensual (em muitos sentidos); por vezes, erótica. Há outras? Sim, acho que haverá. Por ora, não sei tudo que tenho, afinal sou um açougue inteiro de possibilidades. Seja concentrada no frio da geladeira, embalada a vácuo, seja no sangue que escorre.

Impressionantemente, constrói-se erotismo até com linguagem em tom raivoso, léxico gelado, denotativo, cotidiano, mercantilista e científico:

Suado. No terminal, distrai-se na compra de um daqueles sorvetes imitação fajuta de Mac Donald’s ou coisa do tipo. Pouco importava o diabo do sorvete. Ela nem gostava muito de sorvete. Importa que era anatômico aquele troço gelado.

Se a cada excerto diversos gêneros vão ser experimentados, também várias partes do corpo serão focalizadas e diversas partes da língua (língua-linguagem? língua-músculos?) e seus processos. Passemos em algo que começa um ensaio e, em curso, camaleou-se em crônica, enquanto enfoca a fonética.

Carma: agora um nome de um tipo derivação regressiva. […] Carma é ainda um quase cama (com o primeiro A aberto), meio camaleão. Ou cama, com o primeiro A nasalizado, cuja relevância nem é preciso destacar.

Noutra parte da obra a primeira frase encena um conto, mas o enredo não chega, não existe, e logo a narradora vira-se para o leitor e começa uma potencial crônica sobre línguas e saliva, que logo mais à frente ainda é deglutida por reflexões filosóficas do campo da empiria radical e, no estômago do texto, um quase ensaio?

Por que seu corpo não entende as metonímias e, assim, não sabe que as línguas têm seus donos e que cada dono é um caso particular, que cada língua é o próprio dono e seus compromissos pessoais? Corpo burro! É dele que parte as figurações, as sensações, as metáforas do mundo, mas ele não entende a parte da metonímia que separa o espaço de todas as coisas.

Diálogo puro, gênero quase dramático, com enfoque metalinguístico e metacomunicacional? Sim, logo na sequência em “De tudo o que vai”. Há inclusive ensaios com temas improváveis - homens praticando abdominais na academia -. mas o método é transcendental à la Sartre, focalizando quem olha olhando a si mesmo durante o ato de olhar:

Uma das coisas mais sexies nos homens é vê-los fazendo abdominal. Sim, banal. Não é uma visão ultra-instintiva; não é só de carne e pronto. É o prazer de admirar […].

Relações entre excertos, entre partes de um excerto, e um monólogo. Se a obra é corpo, não é de se admirar que a autora fizesse com que as partes desse corpo comunicassem-se entre si, num movimento claramente fisiológico. Do final de um “esperamos o próximo passo: a canalhice”, ao texto seguinte, que encena a dor desejada em um relato que a estrutura textual parece sugerir elementos de crônicas realistas; e depois um monólogo para questionarmos nosso quase deslize entre o real e o ficcional, lembrando que estamos a todo tempo escorregadiços sendo enganados por Carmen:

Não me procure nos textos. Entenda textos através de mim. Aceite o convite ao simulacro. Tudo o é. E se algo for verdade, que seja para a mentira. A ficção é meu ponto de partida, meu meio e meu fim. Nesse sentido, há o que revelar. Admito: sou sensual. Naquele sentido de que se valorizam os sentidos e os sensos (ou não-senso; tudo pelas palavras) - talvez um cruzamento bovary-karamazov.

Desse karamazov a mais à frente, transmutando o “somos todos responsáveis por tudo e por todos, e eu mais que os outros” de Dostoiévski, Carmen incorpora: “estou aqui para oferecer-lhes o pão e assumir toda e qualquer culpa”.

“Questão de língua” consegue estar no meio caminho entre o dramático (um diálogo) e uma poesia. Brinca-se com fonemas e semântica bem no meio de campo entre o risível e o erótico. “Máximas Cármicas” entra na estrutura de axiomas tal qual “Além do Bem e do Mal” em Nietzsche, e no conteúdo vai a quase pornográfico.

Seria possível e até desejável a uma pessoa prolixa como eu enveredar por tantas outras questões de conteúdo e forma da obra. Convenhamos: com símbolos do cotidiano e do corpo (lavar louça, trilhos de trem, saias de amigas que são emprestadas, cubos de gelo,…), usar-se disso para salpicar problemáticas sobre trabalho, propriedade privada, autoridade, epistemologia e termofísica é o êxtase de qualquer literato-pesquisador. O simbolismo e as relações entre realidade, ficção e teoria são radicalmente experimentadas a todo momento.

Tomadas isoladamente, há mundos inteiros de sugestionabilidades: conversa-se o tempo todo, mesmo não sendo o tempo todo, com a própria noção básica do erotismo. E é exatamente essa não vinculação a nada que torna um desafio classificar e estudar a obra. Para fazê-lo, apenas não acatando a quaisquer ordens metodológicas do estudo de literatura como pensado até hoje. E, talvez, enquanto professora de literatura ela -mesmo a autora, até algo disso - de não prescrever ordens de como estudar a literatura - parece que ela nos fez questão de inserir na obra em voz de suas narradoras:

Na verdade [o que é pior], eu nem sei dar ordens e não saberia jamais, porque ninguém me ensinou. Ninguém me ensinou a mandar no mundo todo.
[…]
Você quer tudo de mim, você quer se dominar a partir de mim. Mas aviso: não é possível me dominar, porque faço parte de você e sou muito, muito mais do que você. Você não é capaz de fazer tudo o que eu faço. Suas discussões são aprisionadas no tempo e nas estradas. […] E ao leitor, pensa você que vai conquistar com suas mesquinharias retóricas? Olha que me volto contra todos! Faço ondas de papel para seus barquinhos de água.

Eis um pouco da Carmen de Camila Dalvi em Memórias de Minhas Carnes. Mas só um pouco. Sempre muito pouco para o tudo que queremos.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim