O olhar daquela menina

Anaximandro Amorim

 

Márcio Seligmann-Silva, professor e pesquisador da Unicamp e um dos grandes teóricos da questão da memória dentro do campo literário, assevera, em artigo sobre o tema, que “[o] teor de irrealidade é sabidamente característico quando se trata da percepção da memória do trauma” (1) . Eis, portanto, a sentença: não há testemunho sem dor. Assim é com obras já canônicas, tanto da literatura universal quanto brasileira: O diário de Anne Frank; É isto um homem, Primo Levi; Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus; e Nerina: Relatos de uma vida, autobiografia da autora ítalo-capixaba Nerina Bortoluzzi Herzog, uma sobrevivente da II Guerra Mundial que, além de narrar seu testemunho de vida, tão imbricado com a Guerra, também levanta questões ontológicas, identitárias e, em última análise, humanitárias.

O título do livro já nos indica aquilo que o leitor vai descortinar: um relato. A autora, no entanto, não se presta a algo meramente factual. Como uma menina, (des)encantada pelo que a circunda, ela escreve como se em um diário fosse, abrindo, no entanto, o flanco para todos nós, em tons líricos e confessionais. Pois, se não é um diário:

“À escrita performática do diário responde a nossa própria leitura performática, na qual nos lemos no espelho do diário. Refletimo-nos, assim, nos cacos e estilhaços dos diários que lemos. Trata-se de uma leitura, portanto, particularmente autorreflexiva e que será tanto mais demandada quanto mais nossa autoimagem estiver em crise.” (2)

Nerina Bortoluzzi Herzog nasceu em 15 de maio de 1936, em Valdenogher, na província de Belluno, no Vêneto, norte da Italia. Filha de Isidoro e Santa e irmã de Franco, a bela montanhesa de olhos claros, que gostava de canto, tinha várias amigas e ia para a igreja todos os domingos, como soía a qualquer tradicional família italiana, viu não só sua vida mas a de todos ser entremeada pelos tanques e armas da SS Nazista. Quase perdeu o pai, obrigado a servir na Albânia e, mais tarde, torturado por soldados do Reich. O retorno de Isidoro a casa foi de uma felicidade profunda, mas não aliviada: pouco tempo depois, a garota testemunhou, de muito perto, a partida de um tio, pelos fuzis dos alemães. A bela menina, a pretexto de entregar batatas para este e seus amigos, sonhava em poder salvar os rapazes e o mundo, na sua inocência de criança:

"(...) cheguei à grande curva à direita e vi aqueles pobres rapazes: no meio deles estava também o meu tio Nani, alto e belo. Fui bruscamente impedida de chegar até eles. Os alemães, com seus uniformes da SS, com aquele capacete de muc (elmo) na cabeça, com aquele olhar frio, armas pesadas nas mãos, me rechaçaram violentamente dali.

Muita gente corria para ver aqueles pobres jovens. Eu fiquei ali imóvel, com a echarpe apertada ao coração que batia forte, não somente porque eu não havia corrido, mas pelo medo das armas e daquelas vozes assustadoras dos soldados, que gritavam: ‘Haus! Feuer! Vá pra casa, senão atiro!’.

Parei ali, de repente: uma menina aterrorizada pelo fuzil apontado contra mim. Mas uma força inexplicável me surpreendeu e me encorajou a enfrentar aquele olhar de gelo até que o soldado abaixou a arma. Naquele momento, o medo desapareceu.

Creio, ainda hoje, que aquele soldado nunca deve ter esquecido que o olhar daquela menina, desarmada, o impediu de atirar." (3)

Se o soldado não se esqueceu do olhar da menina, a menina também jamais se esqueceria do olhar do soldado. Ela, porém, seria atingida na alma. A família, no corpo: o pai, torturado de novo pelos alemães, temendo pela vida junto com os seus, decide juntar o pouco que tinha para uma viagem, só de ida, para o Brasil, mais precisamente, Vitória, local cuja única referência era um tio, irmão de Isidoro. E mais nada.

A mocinha montanhesa, cujos olhos só conheciam as paisagens do norte da Itália, levava na mala a esperança de uma vida de paz em um país que soava, para todos naquela família, como um algo, no mínimo, exótico. Vitória foi-lhe descortinada, primeiramente, por foto:

"Em Milão, fomos ao Consulado Brasileiro para buscar os vistos de entrada no Brasil e para resolver a parte burocrática da viagem. Um secretário, muito gentil, nos mostrou o mapa geográfico e as fotos da cidade de Vitória, com a baía e o porto, assim pude ter uma vaga ideia da cidade onde iríamos morar. Pareceu-me estranha, mas muito bonita, com todas aquelas ilhas na entrada da baía". (4)

Não é só a questão do trauma, mas, também, o estranhamento e, por que não, o nascimento de uma nova identidade, advinda da saída forçada do país natal, que fazem com que Nerina, inicialmente, com um olhar demiurgo, nos teça um verdadeiro documento histórico da sociedade capixaba da época:

"Vitória era uma cidade provinciana, com costumes e comportamentos ligados às tradições, com poucas alternativas culturais e uma mentalidade antiquada, e, como eu não pertencia à alta sociedade, não frequentava festas e clubes, era sempre um pouco excluída, mesmo que fosse tratada com respeito e cortesia." (5)

Um estranhamento que expõe mazelas históricas da nossa cultura:

"Todas as famílias de um certo nível tinham um ou mais empregados domésticos grátis, pessoas pobres e humildes, que mostravam um respeito servil em relação aos patrões, talvez herança de séculos de escravidão."

(...)

Eu vivia uma vida simples de trabalho; para nós o trabalho era uma coisa normal, mas certos serviços de casa, na mentalidade brasileira daquele tempo, eram adequados somente aos empregados domésticos, não certamente para uma moça branca e europeia como eu. Esse comportamento e esse sentimento colonialista brasileiros em relação ao trabalho me incomodavam e eram muito estranhos para mim”. (6)

A memória do trauma, no entanto, permanece, convertendo-se, ressignificando-se. No caso de Bortoluzzi, não é apenas o da guerra, mas a vinda forçada para o Brasil, como uma retirada a fórceps do útero materno, causando, no entanto, mudanças tão profundas a ponto de fazer com que o própria autora criasse uma nova identidade, um novo onthos, consequência inevitável de todo o processo:

"Reencontrar todas as pessoas queridas, ouvir falar a minha língua materna era como um sonho, como se ouvisse novamente uma música que jamais havia esquecido. Rever a minha terra tão amada despertou grande incerteza em relação a que lugar eu pertencia. Quem era EU? Agora havia retornado àquela que era a minha CASA, mas já não era mais a minha casa...

(...)

Na Itália: eu sou brasileira!

No Brasil: eu sou italiana!” (7)

“Este sentimento comum mora no próprio sobrevivente e o tortura, gerando uma visão cindida da realidade.” (8) Aliás, Seligmann-Silva continua: “o testemunho visa à integração do passado traumático”. (9) É esse passado, sempre revisitado, que forjará, em uma memória de dor, a força para que o autor continue. É como uma cicatriz: ela não arde mais, não dói mais, mas sempre estará ali, como uma marca indelével. No caso de Nerina, a cicatriz é, indubitavelmente, a guerra, sobre o que ela conclui, com a autoridade de quem sobreviveu:

“Quero dizer a todos aqueles que querem a guerra, com todos os seus horrores, que ela destrói tudo o que é moral e ético - e não perdoa.

Na guerra predomina a barbárie. A liberdade humana é interrompida em todos os sentidos.

Eu, como sobrevivente da guerra e pacifista, posso dizer: a guerra, mais cedo ou mais tarde, sem exceção, destrói também aqueles que a provocam." (10)

Texto produzido para ser lido no encontro de 19 de setembro de 2020, do Clube de Leitura Leia Capixabas, via Zoom, com o tema: “Biografia”.

Anaximandro Amorim é advogado, professor e escritor. Membro da Academia Espírito-santense de Letras, da Academia de Letras de Vila Velha e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Aluno especial do Mestrado em Estudos Literários da UFES.

NOTAS

(1) SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento. Revista do Programa de Pós-Graduação em História. Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 3 – 20, jan. / jun. 2010, p. 10.

(2) SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho, p. 08.

(3) HERZOG, Nerina Bortoluzzi. Nerina: Relatos de uma vida. Vitória, Casa d'Italia do Espírito Santo, 2018, p. 78 (grifos da autora).

(4) HERZOG, Nerina Bortoluzzi. Nerina: Relatos de uma vida, p. 123.

(5) HERZOG, Nerina Bortoluzzi. Idem, p. 166.

(6) HERZOG, Nerina Bortoluzzi. Idem, p. 167 (grifos da autora).

(7) HERZOG, Nerina Bortoluzzi. Idem, p. 228.

(8) SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho, p. 10.

(9) Idem.

(10) HERZOG, Nerina Bortoluzzi. Idem, p. 240.

REFERÊNCIAS

HERZOG, Nerina Bortoluzzi. Nerina: Relatos de uma vida. Vitória, Casa d'Italia do Espírito Santo, 2018.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento. Revista do Programa de Pós-Graduação em História. Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 3 – 20, jan. / jun. 2010.

Voltar 

Ir para o índice

Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim