O macho falido

Anaximandro Amorim

 

Fernando Fardin (1983) é capixaba de Castelo. Bacharel em Direito e servidor público do TRT da 17ª Região (Espírito Santo), o autor estreia na literatura com um recolho de 12 contos, intitulado Aonde o sol não vai, lançado em 2021, pela Páginas Editora, de Belo Horizonte. Todos os textos têm como protagonista o jovem historiador Genaro Caliman, carioca que vem dar com seus costados em terras capixabas, vivendo, neste rincão, uma série de desventuras politicamente incorretas, que mostram, em última análise, um retrato deste nosso começo de século.

Se o contemporâneo, segundo lição de Giorgio Agambem (1),

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.

Podemos afirmar, portanto, que o mesmo ocorre no campo do fazer literário, ensejando uma “hibridez de forma” que ultrapassa o convencionado na teoria da literatura. Dizemos isso uma vez que, em uma outra leitura da obra, podemos questionar se se trata, de fato, de um livro de contos, e não de um romance, feito de recortes, vez que o fio condutor, o protagonista Genaro Caliman, participa de todos os textos, concedendo uma espécie de unidade lógica ao livro, como sói a uma obra romanesca. O pomo de discórdia, no entanto, pode ser aventado quanto à questão do tamanho do livro (um volume de 125 páginas), que pode muito bem ser considerado uma novela, também. Preferimos, a despeito do que levantamos acima, classifica-lo como um livro de “contos”, pois, pelo vaticínio de Massaud Moisés (2),

(...) somente o romance encerra uma tentativa de totalidade, num tempo em que o ‘nosso mundo se tornou imensamente grande e, em cada um dos seus recantos, mais rico em dons e em perigos que os gregos’. Herdeiro, avatar da epopeia, o romance desempenha função mais importante do que constituir-se uma narrativa destinada à fruição narcotizante do burguês entediado: uma representação da totalidade do mundo e um meio de conhecimento da realidade.

Ficamos, portanto, com a ideia de que Aonde o sol não vai traz textos cujas unidades dramáticas gravitam “em torno de um só conflito, um só drama, uma só ação: unidade de ação” (3), ainda que, no conjunto, a multiplicidade de tramas pode criar um só drama. Isso, no entanto, não importa: a leitura, fluida, fácil, traz nela a questão do humor, segundo Vladímir Propp (4),

Partimos do fato de que o cômico e o riso não são algo de abstrato. O homem ri. Não é possível estudar o problema da comicidade fora da psicologia do riso e da percepção do cômico.

É interessante acompanhar o surgimento de mais uma obra que se debruce sobre o cômico, tradição, ousamos afirmar, pouco encontradiça dentre os autores brasileiros do Espírito Santo: Mendes Fradique, Paulo Vellozo, Jayme Santos Neves, Guilherme Santos Neves, Carmélia Maria de Souza, Milson Henriques e, mais recentemente, na poesia, Fabio Daflon. A comicidade, que, em termos linguísticos, se dá, grosso modo, com a oposição dos scripts de linguagem, solapa a expectativa, brincando com a interpretação do leitor (5).

Assim entendemos a estrutura dos textos de Fardin. Começamos pelo protagonista: Caliman é, na visão do escritor e membro da Academia Espírito-santense de Letras Marcos Tavares, autor do prefácio (6), um

(...) pícaro (...) [um] personagem de condição social humilde, sem ocupação certa, vivendo de inesgotáveis expedientes, a maioria dos quais, escuso; que, para conseguir o que quer, se utiliza de ardis, astúcia, cinismo; burlão invencível, sem escrúpulos e sem remorsos.

Homem, cis, branco, heterossexual, Genaro Caliman tinha tudo para fazer deste mundo o seu “parque de diversões”, não fosse um detalhe: sua situação social, característica que o coloca em contradição com as estruturas da sociedade, gerando, portanto, o chiste. Como “pícaro”, ele é o “anti-herói”, uma espécie de “macho falido”, que encontra dificuldade para a fruição dos seus desejos, devendo, portanto, ele próprio também se submeter às estruturas de Poder. 

Ele, portanto, não consegue levar a cabo a “performance”, no sentido butleriano (7), do que se espera de um homem de suas características em uma sociedade falocêntrica, homofóbica, racista e machista. Dessa feita, Caliman acaba se colocando, também, ao lado dos “oprimidos”, tendo no humor a única arma para conseguir legitimar alguma voz ante o status quo (8):

Eu trabalhava como jardineiro numa mansão grã-fina na Ilha do Boi, bairro abastado da capital. Pegava todo santo dia um ônibus lotado até o destino. Ia sempre em pé, trocando cotoveladas com outros miseráveis. Gente tão fedorenta quanto eu, de camisa regata e mau humor. Volta e meia um grandalhão esfregava seu sovaco suado na minha cara. Aquilo não era transporte público, nada disso. Não passávamos de bois entulhados numa carreta velha.

Ou, no caso (9):

O sujeito usava uma calça-jeans "esmaga-ovos" e agora os meus é que seriam amassados, cozidos e servidos na bandeja dos poderosos. Maldito seja esse canalha!

A condição de subalternidade do “herói” do livro faz com que ele não consiga lograr o seu objeto de desejo (10):

Quantos degraus, aqueles. Mas eu estava forte, muito forte naquela noite enluarada. Sentia-me motivado no trabalho, finalmente. Deitei-a na cama. Fiz um chá quente, de camomila. Servi-a. O pranto cessou. Sugeria a ela que, por mera cautela, dormíssemos juntos. Poderia, assim, observá-la, assegurar-me de que não havia sofrido uma concussão.
- Saúde em primeiríssimo lugar - eu disse.
- Fora daqui, agora - ouvi como resposta.
Desci cabisbaixo. Quanta ingratidão, quanto desamor. Tudo era um sintoma da decadência da sociedade ocidental. Valores como a solidariedade foram eclipsados, pisoteados. Nossa civilização declinava, rumava para o abismo.

Há, no final da obra, uma tentativa de gozo, num sentido tanto denotativo quanto conotativo (11):

Fomos um pouco mais para o fundo e começou o rala-e-rola.
Senti-me profundamente inteligente e esperto.
Poderia ser o presidente de uma grande empresa, se as elites da Avenida Faria Lima não tramassem contra mim todos os dias.
Avanços mais contundentes foram obstados pela superpovoação da praia.
No retorno à areia, risos e mais risos da plateia na minha direção. 
Infelizmente, não se tratava de qualquer reconhecimento ao meu feito, muito pelo contrário. Minha roupa de banho - uma sunga, revelou-se extremamente imprópria para o serviço feito na água. Parte da brocadeira foi exposta ao público em geral, lamentavelmente. Não teria acontecido com um short. Faltou-me prudência.

Alijado das estruturas de Poder, como ele próprio repete, ensejando uma lamúria, Caliman quase leva seu gozo à realidade, numa prova de que a fruição do objeto de desejo, em uma sociedade de papéis preestabelecidos como a nossa, é direito de poucos. Entendemos, aqui, também, esse gozo como o arquétipo do desejo performado, ou, no caso de Genaro, não performado, o que leva o personagem a lançar mão do único recurso que lhe resta, para obter alguma voz neste “não-lugar”: o humor, ácido, mordaz, em um discurso que se faz em primeira pessoa, de um narrador que mostra, a todo tempo, mais um alijado do cânone.  

Àquele que não consegue satisfazer seu gozo completamente, resta a imaginação (12): “Sonhei com a bela Gertrudes e eu, num veleiro por aí, conhecendo a costa africana. Solidão acompanhada”. Aqui, neste caso, consubstanciada em literatura, pelas mãos de Fernando Fardin.

Anaximandro Amorim é Membro da Academia Espírito-santense de Letras (cadeira 40), da Academia de Letras de Vila Velha (cadeira 12 e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Mestrando em Estudos Literários (UFES).

REFERÊNCIAS

(1) AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, s/p. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4332647/mod_resource/content/3/contempagamben.pdf

(2) MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa. São Paulo: Melhoramentos, 1979, p. 161.

(3) Idem, p. 20.

(4) PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992, p. 27.

(5) “A proposta geral, segundo o autor, era formular uma teoria que pudesse explicar, em termos semânticos, o que torna um texto engraçado. Para isso, as piadas deveriam atender a duas exigências: 1) apresentar dois scripts compatíveis, seja de forma parcial ou não; 2) a dupla de scripts precisaria estabelecer essa noção de oposição em si. CARMELINO, Ana Cristina, RAMOS, Paulo. “Linguística textual e humor”. In: JUNIOR, Rivaldo Capistrano, LINS, Maria da Penha Pereira, ELIAS, Vanda Maria (org.). Linguística Textual: diálogos interdisciplinares. Vitória: PPEL-UFES, São Paulo: Editora Labrador, 2017, p. 365.

(6) TAVARES, Marcos. “O pícaro Genaro”. In: FARDIN, Fernando. Aonde o sol não vai. Belo Horizonte: Páginas Editora, 2021, p. 10.

(7)  “(a) a performatividade de gênero não pode ser teorizada separadamente da prática forçosa e reiterativa dos regimes sexuais regulatórios; (b) a explicação da agência condicionada por aqueles próprios regimes de discurso/poder não pode ser confundida com o voluntarismo ou o individualismo, muito menos com o consumismo, e não pressupõe, de forma alguma, um sujeito que possa escolher; (c) o regime da heterossexualidade atua para circunscrever e contornar a "materialidade" do sexo e essa "materialidade" é formada e sustentada através de — e como — uma materialização de normas regulatórias que são, em parte, aquelas da hegemonia sexual.” “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’”apud LOURO, Guacira Lopes, O corpo educado: pedagogias da sexualidade, s/p, edição eletrônica.  

(8) FARDIN, Fernando. Aonde o sol não vai. Op. cit., p. 25.

(9) Op. cit., p. 91.

(10) Op. cit., p. 103.

(11) Op. cit., p. 125.

(12) Op. cit., p. 126.

BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, s/p. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4332647/mod_resource/content/3/contempagamben.pdf.

BUTLER, Judith. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’” apud LOURO, Guacira Lopes, O corpo educado: pedagogias da sexualidade, s/p, edição eletrônica. 

CARMELINO, Ana Cristina, RAMOS, Paulo. “Linguística textual e humor”. In: JUNIOR, Rivaldo Capistrano, LINS, Maria da Penha Pereira, ELIAS, Vanda Maria (org.). Linguística Textual: diálogos interdisciplinares. Vitória: PPEL-UFES, São Paulo: Editora Labrador, 2017, p. 365.

FARDIN, Fernando. Aonde o sol não vai. Belo Horizonte: Páginas Editora, 2021.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa. São Paulo: Melhoramentos, 1979, p. 161.

PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992, p. 27.

Voltar 

Ir para o índice

Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim