Abrindo as portas da Coleção Letras Capixabas, O sol no céu da boca, primeiro livro de Fernando Tatagiba, foi publicado em 1980 como resultado de uma iniciativa conjunta da Fundação Cultural do Espírito Santo com a Fundação Ceciliano Abel de Almeida, após várias publicações esparsas – em revistas e antologias de alcance nacional – do premiado escritor que, até então, era jornalista. Os 24 contos reunidos na coletânea também abrem portas para a consolidação de uma abordagem da produção literária que ainda carecia, no Espírito Santo, de representantes que a defendessem: uma literatura que efetivasse o rompimento com a tradição do beletrismo, defendida pela classe média, e se voltasse para a realidade das personagens ignoradas por essas produções existentes, marginalizadas. Conforme defendido em 1986 por Tatagiba em seu terceiro livro, Rua:
O povo está nas ruas, o povo ainda está e sempre estará nas ruas, as estórias e os fatos do cotidiano ali, na esquina – como um painel na via pública – entrelaçados com a poesia do dia-a-dia, à espera dos mais sensíveis, dos autores iniciantes, da prole do proletariado, para que sejam transformados em vida, arte – e explosão. (TATAGIBA, 1986, p. 17 apud SOARES, 2014, p. 20).
Somam-se ao nome de Tatagiba o de Carmélia Maria de Souza e o de Lacy Ribeiro, de modo que representam hoje três dos maiores destaques quando se pensa na Literatura-Povo. Atualmente, incontáveis escritoras e escritores dão sequência a esse legado. Destacam-se, por exemplo, Aline Dias, Aline Prúcoli de Souza, Bernadette Lyra, Brunella Brunello, Hugo Estanislau, Marciel Cordeiro, Marília Carreiro, Saulo Ribeiro, Tiago Zanoli, Wagner Silva Gomes e vários outros nomes. Citá-los não significa tarjar classificações, tampouco reduzir a profundidade de suas narrativas. São obras que, de maneira sensível ou bruta, extraem a poesia do cotidiano e revelam seres humanos comuns, mas relegados à marginalização social, vitimados pelas mais variadas formas de violência, em espaços de opressão. Sempre atual.
Assim é possível identificar uma literatura produzida como discurso social (SOARES, 2014), construída a contrapelo da História regida pelo capital; que se preocupa com seu tempo, ora recorrendo à memória para que traumas passados não se repitam; que vai para as ruas e enxerga a realidade de todos os espaços e personagens; que se encontra com a vida, à vera, e a recria através da linguagem – nunca utilizada em vão. Uma literatura que reelabora a cidade, “colocada em cena como desajuste, como local de questionamento da própria existência e da inadequação desta vida urbana” (SOARES, 2014, p. 85). Conforme João Antônio em seu prefácio “Paixão e conto, conforme Fernando Tatagiba”, trata-se de “apresentar possibilidades em leque para um mosaico inédito de realidades brasileiras” e, dessa forma, “adentra a dolorida comédia humana dos esquecidos, loucos marginalizados de várias formas e gentes sem eira-nem-beira” (ANTÔNIO, 1980, p. 9; 11 apud TATAGIBA, 1980).
O início do conto “Bacurau” exemplifica, conforme já colocado, a realidade banal de pessoas comuns na rotina das cidades como ponto de partida:
Madrugada.
Homem deitando em banco de abrigo.
Mulher encostando no ponto de ônibus.
Menino abraçando cesta contendo três pastéis.
A mulher
evita os olhares dos homens que aguardam o bacurau.
O menino
chora com os dedos entreabertos: súplica. Alguém se aproxima e interroga.
Menino respondendo: perdeu nota de dez cruzeiros, féria do dia.
Fiscal avisando: esta criança encena todas as noites, enganando incrédulos a preços populares. (TATAGIBA, 1980, p. 63)
Há situações em que essas personagens sequer são capazes de formular palavras, de estabelecer diálogos:
Um velho coloca a cabeça na fresta.
E tenta perguntar alguma coisa:
– ?.
[...]
Num esforço, o morador torna a tentar:
– ?.
[...]
Num esforço supremo, o velho abre um pouco a porta e tenta novamente:
– ?.
[...]
Nada mais
tendo a dizer,
voltou a deitar na poltrona [...] (TATAGIBA, 1980, p. 66-67)
Os contos de O sol no céu da boca, no entanto, não se restringem apenas a uma reformulação escrita da vida real, de pessoas reais. À banalidade do cotidiano e à simplicidade das personagens alia-se o elemento insólito que imprime, além do incomum, o maravilhoso e o fantástico nas narrativas, provocando estranhamentos tanto no enredo quanto na estrutura textual, visto que, como apontou Sarah Vervloet Soares (2014) em sua dissertação, a coletânea possui uma “insólita estrutura”. Em “Inquilinos do vento”, a chegada definitiva de desconhecidos à casa da protagonista provocou primeiro uma quebra de rotina; em seguida, já os inquilinos estabelecidos na residência, a narrativa recebe o elemento insólito: “Chegaram e se instalaram sem dizer uma palavra. Não sei de onde vieram nem para onde iriam. Nunca os tinha visto antes” (TATAGIBA, 1980, p. 86). O incomum que provoca o estranhamento da narrativa, é acrescido de características que rompem com os limites do real: “As duas crianças, um menino e uma menina, entre outras manias, possuem o mau costume de trepar pelas paredes. No início não me perturbei. Faziam tudo silenciosamente. Depois, passaram a andar pelo teto” (TATAGIBA, 1980, p. 86).
No que diz respeito à estrutura, à primeira vista é um livro sui-generis e experimental, inventivo e, por isso, inovador. Mas que não se cometa a ingenuidade de limitar em tais termos essa ideia. Nada é por acaso: não é despretensiosamente que os contos “Começo de batalha” e “O outro lado”, por exemplo, alternam a posição dos parágrafos: cada posicionamento de texto indica também a posição das personagens no contexto da narrativa; em “Aceno no escuro”, os parágrafos em recuo distinguem-se dos demais para indicar diferentes focos narrativos, como em “Hoje não tem espetáculo”; o cotidiano recriado no livro se manifesta explicitamente em: “A paixão segundo...” e “Bacurau”, pelas indicações de horário; “Avenida Vênus”, através das datas de ofícios e arquivos; “Hoje não tem espetáculo”, no qual a data aparece também em comunicado no conto; “Morte no supermercado” e “Inquilinos do vento”, por sua divisão estrutural ser auxiliada pela indicação dos dias da semana, como acontece em trecho de O sol no céu da boca nos trechos que contém a simulação do calendário; enfim, há diversos elementos que marcam, estruturalmente, “as estórias e fatos do cotidiano”, de onde, atento e sensível, preocupado com seu tempo, Fernando Tatagiba transforma em arte a vida, entrelaçando, nesta, “a poesia do dia a dia”. Soares defende que as personagens do livro são “os mesmos alvos da higienização das cidades”, ofuscados pelos processos de modernização, de modo que, ao expor as mazelas dessa sociedade higienista, “lança seu olhar para o lugar do renegado” (SOARES, 2014, p. 90-91). Para João Antônio:
Os ambientes são multifacetados: a violência urbana e o horror da vida burocrática, a solidão e a miséria da vida circense, a patética e desencontrada carência dos travestidos, o absurdo da condição humana diante da morte, o miserê descarnado dos migrantes que ficaram sem as raízes e sem a esperança nas nossas chamadas cidades grandes ao ritmo maluco do despreparo para o inchume que vão sofrendo... malucos, fanáticos, inocentes, pedintes, energúmenos, paralíticos, famintos, burocratas, ex-homens formam a vida, paixão e morte desse universo humano [...] (ANTÔNIO, 1980, p. 12 apud TATAGIBA, 1980)
Por fim, cabe destacar Fernando Tatagiba, ao voltar seu olhar de cronista e sua capacidade cinematográfica de descrição de cenas para “subterrâneos” e “almas” – usando palavras de João Antônio – sua literatura rompe, também, com a banalidade das rotinas; entretanto não somente pelas vias do evento insólito, e sim porque imprime profundidade às personagens, revelando a humanidade além da sua condição alijada. Isso marca a permanência não datada de sua obra. Soares (2014, p. 11-12) entende que essa produção como voz isolada no cenário urbano, sempre às margens, provoca uma ruptura com a literatura então produzida e cultivada no Espírito Santo enquanto resgata, dos espaços sociais diversos, figuras abandonadas ao esquecimento. E essa característica que marcou a obra de Fernando Tatagiba se mantém, mais de 40 anos depois, impressionantemente atual – o que faz dela necessária à vida. É um exercício não só de compreender, mas também de ressignificar. Estando em 2021, na expectativa de todos os avanços que a evolução da História poderia reservar, o cenário visto é de uma pandemia global que se mantém por mais de um ano, sem previsão de que seja extinguida; ao contrário: enquanto o Brasil assiste ao expressivo aumento de número de mortes em consequência de um colapso generalizado na área da saúde provocado, essencialmente, por má gestão, predomina o negacionismo genocida. E, mais recentemente, a opressão evidente. Agora ricos e pobres, celebridades e indigentes, privilegiados e espoliados disputam – ainda que o neguem – os mesmos direitos à vida, e são mortos porque a dignidade lhes foi negada. Hoje, exigir a qualidade moral que infunde respeito a todo ser humano é diariamente descredibilizada, quando não oprimida, cada vez mais. Não há vagas em vida; não há vagas para a morte. Não estamos morrendo: estamos sendo mortos e varridos do mapa! A quem interessa o nosso genocídio?
Depois do meu desaparecimento, o progresso continuará: altos edifícios subindo, outros operários caindo, outras inscrições nas novas construções:
NÃO HÁ VAGAS
Mas sempre se dá um jeitinho, como eu dei, e se arranja vaga até o dia em que a gente cai e morre. O mais difícil será conseguir uma cova já que me consideram indigente e não gente. E porque – me disseram – no cemitério também está escrito:
NÃO HÁ VAGAS PARA INDIGENTES
na porta
de entrada.
Só espero que não deixem meu corpo vagar sem vaga por aí. (TATAGIBA, 1980, p. 39)
Renan Peres é graduado em Letras pela Faculdade Saberes; mestrando em Letras – Estudos Literários (PPGL/Ufes). Publicou o livro de poemas sintomas (2020) pela Editora Pedregulho.
REFERÊNCIAS
SOARES, Sarah Vervloet. A obscuridade protestante: os aspectos sociopolíticos e as marginalidades em O sol no céu da boca, de Fernando Tatagiba. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, 2014.
TATAGIBA, Fernando. O sol no céu da boca. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo, 1980.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.
Editor responsável: Anaximandro Amorim