O desejo aprisionado

Marcela Guimarães Neves

 

Ao som de um pássaro matinal, um doce intruso que me traz de volta das ilusões dos sonhos para as incertezas do mundo, levanto-me no alvorecer. O canto melódico da ave da aurora desperta em mim um desejo de liberdade, uma vontade de quebrar as regras da rotina, um ímpeto de poesia.

Acostumada a ouvir com atenção os chamados da intuição, e tomada por um impulso divergente, abro as primeiras páginas do livro escolhido. A obra O desejo aprisionado, de Deny Gomes (2ª ed., 2015, Secult), já me explica, em seu poema de abertura, denominado “Femina” (p.13), que a mulher é pura - mas não simplesmente - “contradição bem definível”:

“(...)
Uma mulher
(mais zangão que abelha),
só, pode com a vida.
Se dana se não dá.

Uma mulher
é imperceptível,
espessa ou luminosa
se quiser.

Uma contradição bem definível.”

Contraditória, sempre; covarde nunca. Dos anseios aprisionados, Deny Gomes faz versos livres, místicos e intensos. “Sobreviverei ao teu machismo” (p.30), avisa a poeta que também, de um modo firme, afasta as cobras que sufocam o peito para “assobiar liberdade” (p.42); reconhece a mulher capaz de criar clima e fazer drama (p. 29), além de render-se ao fascínio da beleza física (p. 71).

Não resisto. Volto ao prefácio do ilustre professor Paulo Roberto Sodré, que me descreve as diversas dobras do universo particular desta fabulosa escritora, e fico extasiada diante de tão eletrizante biografia. Pesquiso um pouco mais sobre essa mulher que, assim como eu, é capixaba por opção. Professora-titular aposentada de Teoria da Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo, Deny Gomes foi uma heroína das Letras, uma militante político-cultural, integrante de comissões julgadoras de concursos de poesia e pioneira na coordenação de diversas oficinas literárias na década de 1980.

O mergulho é profundo, leitor, e ainda ouço os solfejos libertários do passarinho em minha janela. Diante de tal cenário, um outro apetite se impõe: será preciso uma farta xícara de café preto para que a submersão se faça com uma escafandrista de corpo vívido e espírito alerta.

Munida de uma energia arábica e extraforte, retomo a leitura. Olhos e lábios sucumbem ao estiramento alegre que imponho ao rosto ao ler os textos fraternos de Gomes sobre a boemia do bar Britz, passando pela bela e concreta homenagem ao escritor e acadêmico Marcos Tavares (p.48), e culminando na reverência ao clã dos artistas, objeto de uma “paixão incomum” (p.75). Neste momento, olho o horizonte pela gelosia e declamo em voz alta o verso, selecionado a dedo pela escritora, de autoria do grande poeta Castro Alves:

”Feliz se aquece unida a universal família”.

Entretanto, os próximos versos trazem a seriedade de volta à face. O ser feminino é um oxímoro surpreendente. Como as torturas das noites solitárias descritas pelo viajante de Maya Angelou, Deny Gomes também nos fala das suas...

Jogue seus tabus para bem longe deste livro, leitor, pois a morte também pode ser algo desejável quando da vida já não floresce desejo algum. Não é estranho ao coração humano essa vontade de deixar-se guiar por Caronte e fazer a travessia rumo ao desconhecido, na barca misteriosa que carrega a memória de nossa existência.

“Tão triste, baby, estou.
Mesmo sendo mulher,
acho que vou me matar.” (p.57)

O fio da navalha, a gilete fora da gaveta, o final mais uma vez adiado ante a manhã que se impõe, tal como o orvalho suicida de Sylvia Plath. Teria ouvido a talentosa escritora Deny Gomes a sinfonia dos pássaros? Como um coração feminino, a poesia não deve se submeter a pressões, prisões ou grilhões, nem mesmo os da morte, uma vez que sua luminosidade “rompe algemas e nós: faz sua festa” (p. 58) nesta ou em outra vida.

A ave da janela parte em um voo livre e sem limites, cantarolando com doçura os versos do poema “Alegreza” (p. 44):

“Agora que o sol voltou
e brilha sobre os corpos nus,
tá na hora de sair por aí
assobiando liberdade.”

Não deixe de ouvir os pássaros, leitor, eles têm muito a nos dizer.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim