No prefácio do livro, assinado pela escritora Bernadette Lyra, já se antevê um pouco do que vai se descortinando aos sentidos do leitor enquanto adentra nos poemas deste Breviário.
Estamos diante de poemas ligados aos mínimos movimentos da existência versados em palavras que se materializam com simplicidade e clareza, porém que traçam brechas e provocam rasgos na estabilidade monótona de qualquer déjà vu. (Bernadette Lyra)
Assim como num Breviário, antigo nome dado ao conjunto de orações prescritas pela igreja para serem recitadas diariamente pelos sacerdotes, geralmente em quatro momentos do dia, (liturgia das horas), os poemas de O breviário do silêncio também parecem seguir um esquema lógico e temporal que evidencia construções e (des)construções subjetivas. O livro de poemas está dividido em quatro partes: A desconstrução do Éden; O limite do Mito; A leveza e o peso; O mosaico de palavras.
A desconstrução do Éden, primeira parte do livro, é composta por poemas nos quais Amorim desconstrói o paraíso e conduz o leitor no fio da navalha pelos temas que versam sobre transcendência, morte, memórias, metafísica, passagem do tempo, essência do eu e transitoriedade da vida. Aqui, o leitor se vê atravessado pelas questões existenciais mais contundentes: Por que existimos? Para que existimos? Qual a essência das coisas? Encontramos vestígios de uma escrita mística, que se revelam pela via poética e conjugam uma espécie de “sentimento oceânico” com Deus, corpo, alma e êxtase. No poema “Metafísica III”, subdividido em três partes, Epifania, Parusia e Ascese, observamos essa experiência direta com a divindade, onde o eu lírico dialoga com Deus: Em Epifania, (“É Deus que se fez homem/ Mas eu também sou homem/ Eu também sou Deus?”); em Parusia (“Perdão, meu Deus,/Perdão pelos meus pecados/ E, se for para ser castigado,/Me transforme em estátua de anjo/ - Asas presas para não fugir com seus segredos/ - Olhos cegos para não ver sua chegada”) e em Ascese (“Mas quem é ímpio?/ E eu?/ De que lado vou estar?”). Nota-se ainda nos versos acima e também em outros poemas da parte I, como “Caim”, poema de abertura, o questionamento do eu lírico, dirigido ao Pai/Deus, definindo uma atitude crítica de inconformismo, diante das convenções sociais que permeiam a contemporaneidade.
Seguindo neste Breviário, a segunda parte recebe o nome de O limite do Mito. Após a “Desconstrução do Éden”, desmistificado o paraíso, Amorim ousa ultrapassar o limite do mito e desafia o grande poeta. No poema “Ao maior poeta do mundo”, reafirma a sua maturidade e independência enquanto escritor/poeta.
Neste processo dialético de alienação e separação, (“Havia um pouco de ti em mim/ Havia um pouco de mim em ti/ Era hora de te expelir, aos pouquinhos”) torna-se imprescindível um mergulho profundo no silêncio absoluto, anunciado no poema que inaugura a segunda parte e que dá nome ao livro O breviário do silêncio.
Silêncio sagrado, momento que visa obter a plena ressonância da voz interior para que aflore o processo de criação. (“eu só quero o canto da sala”), (“Este etéreo fechar-se em copas”), (“Tem barulho demais por aqui”). Processo análogo ao de celebração da liturgia das horas, que exige não somente a sintonia entre a voz que reza com o coração que reza, mas também que se adquira um conhecimento litúrgico e bíblico mais rico. O poeta/escritor anseia pela sintonia entre o pensamento e as mãos que escrevem, (“Penso mais rápido que as mãos”) e neste ato, também precisa beber em outras fontes, alienar-se em outros textos, para só depois, construir o seu próprio, sob a sua pena. Para ultrapassar o limite do Mito, antes é preciso alienar-se nele. Não existe um poeta/escritor sem antes existir um leitor, que seja leitor da vida, das “cousas” do mundo, da natureza, enfim. A segunda parte do livro versa então, sobre a possibilidade de criação, algo novo que começa a surgir depois da desconstrução, depois da derrocada do mito. No poema “Inspiração”, o poeta fica “grávido” de poesia, (“Qual (mil)agre do mundo/ Me fará gr(ávido) de poesia?”). Desta mistura de letras e estilos, surge o inesperado, instante de epifania que faz jorrar água nova e cristalina, donde Amorim profere palavras que traduzem um sentimento de liberdade observado no poema “Lua em gêmeos”: (“Sou senhor do(s) meu(s) des (a) tino(s) / Sem (algo) zes nem (front) eiras/ Um todo (in) constante (in) tenso/ Aurora que nasce do (tr) avesso/ Lou (cura) das minhas doideiras”).
Imbuído deste espírito de liberdade, na terceira parte, sob o título A leveza e o peso, o poeta reúne poemas que versam sobre o erotismo e o amor. Nota-se que o título remete à noção de pares de opostos, tão inerente à temática do amor. Os pares (amar-odiar), (amar- ser amado), (amar – odiar x indiferença ou desinteresse), são descritos por Freud em seu texto “O instinto e suas vicissitudes” (1915), como as três possibilidades de opostos que o amor admite. Assim, o amor e o erotismo trazem essa ambivalência intrínseca e são permeados pelas pulsões agressivas e mais primitivas que constituem o que é da ordem do humano, ultrapassando o aspecto meramente reprodutivo-biológico. Os poemas de Amorim em seu “Manual prático do erotismo” que abre a terceira parte do livro, desnaturalizam e conferem subjetividade ao erótico. Escreve o poeta em, “Do sexo e do erotismo”, primeiro poema deste Manual.
O desejo em toda a sua complexidade é colocado em cena nestes poemas que tratam do erotismo, definindo muito claramente as fronteiras sutis entre os campos da pornografia e do erótico, do prosaico, do poético. Nos versos do poema “Do prosaico e do poético”, o poeta tece (“A treliça dos corpos/Fina, rebuscada, embolada/Uma teia complexa/Que causa até espanto”).
Ainda dentro de A leveza e o peso, toda a essência poética do amor cortês, sublimado em sua finalidade sexual, aparece nos poemas, “Era uma vez um mundo”; “Soneto do amor verdadeiro”; “Todos os poemas de amor são para você”; “A despeito do mundo”. Esse amor que, ao transbordar, não cabe mais em si, nos convida para uma “Valsa”, fechando a terceira parte.
E por fim, após Desconstruir o Éden, desafiar O limite do Mito, atravessar A Leveza e o peso do amor e do erotismo, o poeta chega ao Mosaico de palavras, quarta e última parte. Ao unir elementos distintos, Amorim talha em pedra bruta o seu poema “O monólito”, sutil jogo de palavras multifacetadas que pelas hábeis mãos do lapidador irão transmutar o final em um novo começo. E o que é a vida senão um grande palíndromo?
Os poemas deste Breviário nos convocam à contemplação e devem ser apreciados em silêncio, no meio das horas, como preces, pequenas pausas no turbilhão do dia. Parafraseando Neruda, se nada nos salva de nós mesmos, que nos salve a POESIA.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.
Editor responsável: Anaximandro Amorim