Ninguém pode com Nara Leão - uma biografia

Marcela Guimarães Neves

 

Dia de luz, festa de sol, e de um dos apartamentos do edifício Champs-Élysées, na avenida Atlântica, mais precisamente em frente ao Posto 4 de Copacabana, ouvia-se um barquinho navegar ao som do violão de Nara Leão. De fato, a música dos compositores Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli foi o marco do novo estilo que surgia nos idos de 1957: a Bossa Nova.

O brilhante trabalho biográfico do jornalista carioca Tom Cardoso traz contornos precisos da vida e da obra da cantora capixaba que, afora a atividade artística, era uma exímia reveladora de talentos musicais, bem como ativista em diversos movimentos sociais.

Nara Lofego Leão, nascida em Vitória, capital do Espírito Santo, em 19 de janeiro de 1942, era a segunda filha do Dr. Jairo Leão, célebre advogado, que, em virtude de um desentendimento com um poderoso juiz da capital capixaba, decide se mudar com a família para o Rio de Janeiro.

A excentricidade do doutor Jairo sem dúvida contribuiu para o desenvolvimento de personalidades tão intensas como as de Nara e Danuza Leão. Esta foi uma célebre modelo, além de escritora e promoter de festas disputadíssimas na capital carioca; aquela foi simplesmente a musa da Bossa Nova, além de madrinha musical de diversos artistas, tais como Maria Bethânia e Chico Buarque. Com opiniões muito próprias, o pai desses dois ícones das artes brasileiras, por não acreditar nas instituições educacionais, retirou as duas filhas ainda adolescentes do estudo tradicional, mantendo-as em aulas particulares de português, matemática e inglês, além de cursos avulsos, como artes plásticas e violão. Antes mesmo do início do movimento feminista de Beauvoir e Friedan, doutor Jairo já aconselhava as filhas a buscar independência, sobretudo a financeira. “Possuir diploma, dizia Jairo Leão, não tinha importância, e sim testar ‘coisas novas’.” (p. 26)

Ninguém duvida que, nos anos cinquenta, deixar a filha adolescente ter aulas de violão com Patrício Teixeira, um dos músicos mais requisitados pelos artistas de rádio da época, era, de fato, testar uma “coisa nova”. Diferentemente de Danuza, Nara se apaixonou pelo instrumento e, com a anuência de seu pai, pôde desenvolver a sua nova aptidão com figuras como João Gilberto, Carlos Lyra, Roberto Menescal, sem falar em dois outros gigantes da MPB, Vinícius de Moraes e Tom Jobim.

No entanto, apelidada de “Jacarezinho do Pântano” e “Caramujo”, Nara Leão tinha apenas uma única ambição: não ter ambição alguma, sobretudo como cantora. Como explica Chico Buarque no encarte do disco “Vento de maio” (p. 21): “Nara não se ilude: por mais fé que ponha em seu canto, não espera remover montanhas. Isso lhe dá às vezes aquele ar de desencanto, quase beirando à displicência. É quando nasce um samba, um novo alento, uma esperança.”

E foi mantendo esse ar de garota displicente (contrariamente à exuberância de sua irmã mais velha) que Nara Leão participou ativamente dos mais importantes movimentos musicais da década de 1960, bem como decidiu sair de todos eles sem bilhete de despedida. Renegando o título de “musa da bossa nova”, atitude considerada como uma nítida traição pela sua famosa rival Elis Regina, Nara não aceitava rótulos, modismos e, sempre que se sentia um produto de consumo em algum movimento artístico, não se incomodava em buscar novos caminhos, bem como remover certas montanhas. Foi justamente o que aconteceu quando Nara se afastou do repertório bossa-novista para gravar um disco com músicas de Zé Kéti, Nelson Cavaquinho ou, ainda, quando decide ser cantora de músicas de protesto em shows no Teatro Opinião, bem como cantar músicas ditas “para as massas”, como os iê-iê-iês da Jovem Guarda. Para Nara, assim como para Belchior, certo é saber que “o novo sempre vem”. Como afirma o autor desta biografia (p. 145), “livre de preconceito e amarras, bastava a ela que fizesse música brasileira de qualidade – esse era o seu critério afetivo e estético.”

Constante na vida de Nara Leão foi apenas o desejo de formar uma família, o que depois de alguns affairs famosos, como os que teve com Ronaldo Bôscoli (o inquieto “lobo mau”) e com o poeta Ferreira Gullar, conseguiu efetivamente concretizar casando-se com Cacá Diegues, que foi um grande expoente do Cinema Novo, bem como pai dos dois filhos de Nara. Entretanto, a música nunca deixou de fazer parte de sua vida, assim como a luta contra o regime militar, que oprimia brasileiros e brasileiras durante os anos de ferro da Ditadura. Com efeito, o ar de desencanto de Nara desaparecia quando se tratava de política e de luta por direitos humanos e liberdades públicas. Em entrevistas bombásticas para revistas importantes da época, a caçula da família Leão se transformava em uma leoa, como quando dizia que “os generais podiam entender de canhão e de metralhadora, mas não ‘pescavam’ nada de política. Ademais, em manchete no Diário de Notícias, que foi às bancas em 22 de maio de 1966, lia-se ‘Nara é de opinião: esse Exército não vale nada’”. (p. 90)

Ameaçada de ser enquadrada na famigerada Lei de Segurança Nacional, Nara Leão contou com o apoio de 150 artistas que assinaram um pedido para que a cantora não sofresse as truculentas reações do governo militar. Carlos Drummond de Andrade, por sua vez, preferiu prestar solidariedade escrevendo um poema-manifesto direcionado ao Presidente da República, eis alguns trechos (p. 93):

“Meu honrado marechal
dirigente da nação,
venho fazer-lhe um apelo:
não prenda Nara Leão [...]
A menina disse coisas
de causar estremeção?
Pois a voz de uma garota
abala a Revolução?
(...)
Nara é pássaro, sabia?
E nem adianta prisão
para a voz que, pelos ares,
espalha sua canção.
Meu ilustre marechal
dirigente da nação,
não deixe, nem de brinquedo,
que prendam Nara Leão.

Não prenderam Nara Leão. Tortura ela veio a sofrer em razão de um incurável tumor no cérebro que acabou calando a sua voz em 07 de junho de 1989, quando esta tinha apenas 47 anos. Em cartas do exílio na Europa, enviadas a Cacá Diegues (p.157), o grande baluarte do Cinema Novo, o cineasta Glauber Rocha exibia as qualidades da cantora que, segundo ele, eram duas mulheres em uma só: “Amo Nara Leão. Nara e Narinha. Essa mulher sabe tudo do Brasil de 1964. Essa mulher é a primeira mulher brasileira. Essa mulher não tem tempo a perder. Atenção: ninguém pode com Nara Leão.”

Voltar 

Ir para o índice

Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim