Mutações: entre o sonho e a poesia

Andréa Gimenez Mascarenhas

Versos em diferentes matizes de verdes e azuis emergem da tela de Van Gogh, “Barcos de pesca no mar” (1888), tela esta que não por acaso ilustra a capa deste livro de poemas intitulado Mutações. A autora, Ester Abreu Vieira de Oliveira, possui uma biografia que engrandece o cenário da literatura produzida no estado do Espírito Santo e extrapola o território nacional, sendo reconhecida em outros países, principalmente de língua hispânica. No entanto, para muito além de sua rica biografia como escritora, docente e integrante de diversas instituições literárias e culturais, Ester Abreu é uma pescadora de sonhos e nos leva por uma imensidão de verde-azul a sonhar. O leitor é convidado a um mergulho de corpo e alma numa espécie de vórtice das palavras.

O livro contém 31 poemas que versam sobre o mistério da própria criação poética, mesclando com toques sutis sensualidade e inquietações existenciais. São águas que bailam em movimentos sinuosos e curvilíneos como ondas, qual o corpo de uma mulher, um corpo que dança, (“os galhos e as folhas dançarinas”, p.17). Os versos de Ester Abreu transmutam em leveza a angústia dos dias presentes. Uma escrita feminina, um olhar feminino que tem o poder de restituir a beleza e a vida por meio de um ritmo que invoca o que há de mais subterrâneo, o nonsense, o devaneio. Na justificativa da autora, “[...] a princípio, não pensava levar a público alguns momentos nos quais libertei a alma de emoção, que deixei emergirem subterrâneas imagens, as quais não proclamo ipsis litteris, imitem as de Orfeu, que, em tempos imemoriais, foi capaz de falar a todos os seres com seu encantador canto. Longe de mim tal comparação e ascensão poética” (p. 13).  

Em Mutações, Ester Abreu busca a essência da poesia: “[...] procuro a essência da poesia numa visão externa, recriada que me despertou o ápice do sonho” (p. 13). O ápice do sonho remete a um ponto de opacidade/obscuridade, aquilo que Freud denominou em seu texto “A interpretação dos sonhos” (1900) como sendo “o umbigo do sonho”, justamente o que não pode ser conhecido por aquele que sonha devido à intrínseca relação que mantém com o desejo. Trata-se de um enigma encoberto por imagens oníricas metamorfoseadas, deslocadas ou condensadas. Os sonhos têm essa propriedade mutante, deixam apenas vestígios, assim como a poesia.

Ester Abreu deseja que o leitor a acompanhe no “arcabouço das palavras”, e para isso realiza uma viagem através do desconhecido, adentrando o “umbigo do sonho”.  O arcabouço poético sustenta a alma humana. Um corpo sem alma não vive, não pulsa, apenas sobrevive. Os poemas de Ester Abreu, conforme diz Francisco Aurélio Ribeiro ao prefaciar a obra, “são luz nestes tempos obscuros”.

O poema “Mistério” abre o livro:

Os primeiros poemas do livro: “Mistério”; “Angústia”; “Indagações”; “Revelação I” e “Pomar de minha infância”, são marcados por questionamentos sobre a existência, incertezas, uma sombra de angústia, solidão, e reminiscências da infância. Sentimentos certamente advindos de um tempo pandêmico, mas também, ao que parece, de um tempo interior, subjetivo, como refletem os versos do poema “Angústia”. Uma espécie de solidão escolhida.

Marguerite Duras, considerada por muitos como uma das mais notáveis escritoras francesas do século XX, em seu livro de ensaios intitulado Escrever fala que a solidão e a dor residem no processo de escrita. “A solidão da escrita é uma solidão sem a qual a escrita não acontece, ou então se esfarela, exangue, de tanto buscar o que mais escrever.” Duras, [1993]/(2021, p.24).

O silêncio em Mutações reveste-se de louvores e canções, (“Oculto entre cores/ orquestra/ anuncia o dia./ Bach, Beethoven e Mozart/ invejariam a harmonia”.). Sucedem-se às indagações existenciais dos primeiros poemas, versos impregnados de música, vida, cores e amores entre céu, terra, mar e divindades. Primitivos elementos que constituem um DNA poético e mutante como no poema “Visão marítima”

Os últimos poemas do livro, “Silêncio”; “Deus, Tu és meu Deus”; “A dor da Virgem diante do filho crucificado” e “Oração”, traduzem um desejo de aceitação da beleza da vida como dádiva divina. O poema “Deus, tu és meu Deus” remete a um arrebatamento místico tão intenso como na poesia de Santa Tereza D’ Ávila, considerada a Doutora da igreja. Busca a união do corpo com o espírito (“Busco a Ti, Senhor. Ó meu Deus,/Para unir-me intimamente Contigo.”). Um verdadeiro encontro com o campo do feminino, impossível de simbolizar, apenas passível de sentir.

Enfim, às indagações explicitadas no poema “Indagações”

podemos apenas responder com alguma poesia. É certo que os primeiros raios da manhã nascem dissipando os sonhos da noite anterior e deixam apenas alguns vestígios de oníricas imagens. No entanto, os poemas de Ester Abreu, através de seus vestígios, nos levam a sonhar eternamente.

Ester, estrela mutante, mulher, luz e poesia...

“A poesia é a possibilidade de dizer algo sobre o indizível. Se o sonho deixa apenas alguns vestígios, a poesia por sua vez, através dos seus vestígios, nos leva a sonhar”. (Andréa Gimenez Mascarenhas)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

OLIVEIRA, Ester Abreu Vieira de. Mutações. Vitória: Cousa, 2021

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas: A interpretação dos sonhos, 1900, v. IV – Ed. Standard Brasileira – Rio de Janeiro : Imago Ed., 1980.

DURAS, Marguerite. Escrever. Editora Relicário : Belo Horizonte, 2021. (Obra original publicada em 1993, Gallimard Éditions).

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim