Há uma borboleta Monarca viva
na calçada do Espírito Santo

Rafael Muller

 

De uma poetartista performática como Ingrid Carrafa, nunca se pode esperar apenas uma coisa. Não é apenas texto. Não é apenas corpo e performance. Como também não é apenas obscenidade. Em E quando borboletas carnívoras dançam no estômago, tudo que se repete e parece um pode ser mais ou pode ser outra coisa, até o oposto.

Bernadette Lyra, ao prefaciar a obra publicada pela Editora Maré, é muito feliz ao dizer das “obscenidades ternas” que atravessam toda a obra. Serão elas - obscenidades ternas postas em palavras -, as quais atravessaram a autora (ou eu-lírica?, sequer o podemos dizer ao certo) e geraram tais buracos? Será, Bernadette Lyra, que apenas para ser poeta é preciso “ter olhos quando muitos já perderam”? Ou esse será, também, o ofício do atento leitor frente a tal peça?

A obscenidade, a pornografia, elas por definição focalizam fortemente um objeto posto em posição de centralidade. São holofotes que nos cegam para todo o restante. Como falar de obscenidades quando somos levados a enxergar tanto mais com essa poesia? Aí a ternura, que muda toda a tônica estrutural da poética de Carrafa e da obra como um todo. Tal qual, poderemos assim associar, o efeito borboleta? Cujo bater de asas do outro lado do mundo causa um furacão por aqui? E que fará, então, o seu bater de asas dentro do corpo de um estômago com o sujeito que as carrega?

Partamos daquilo que é permanente, obsedante, que fixa o nosso primeiro olhar, tal qual a obscenidade nos impõe uma atenção involuntária: prostitutas, abortos, azia, ansiolíticos, álcool, masturbação, vômito, bucetas, o escritor malfadado, e toda uma mais atmosfera claustrofóbica. Um mundo fodido por pessoas fodidas: por onde sai?

Até certo ponto: repetitivo, cansativo, maçante mesmo. Mas Carrafa é performática, lembremos. Muito dificilmente uma repetição seria involuntária, decorrente de certo branco criativo. E olhar para as estruturas repetitivas nos mostra o jogo que ela parece estar fazendo conosco: no início da obra, poema a poema, a obscenidade domina a prosa poética até aproximadamente 3/4 do texto. Aos finais, entretanto, a ternura chega (ou se mostra). Isso ocorre verticalmente em cada poesia. E ocorre também horizontalmente ao longo da obra: lá para os mesmos mais ou menos 3/4 da obra, as poesias em prosa abrem espaço para aforismas, poesias mais curtas, permitindo ao leitor respirar para fora da atmosfera claustrofóbica criada até então: a ternura performada com o leitor, por meio da obra.

E como agora, eu, poderia falar dessa atmosfera obscena e tenra criada por Carrafa sem muito expô-la (instigando, assim, a curiosidade de lê-la na íntegra)? Indo, talvez, às suas referências também obscenamente expostas na obra. Charles Bukowski, em Fabulário geral do delírio cotidiano: ereções, ejaculações e exibicionismos - o Buk, como é chamado no mundo das borboletas carnívoras -, tem uma frase que sinto sintetizar o sentimento: “Um punhado de gente que presta, chorando de noite”. Bukowski é certeiro com o desolamento geral “punhado de gente chorando de noite” (tanto pela tristeza quanto pela solidão). Mas a ternura - é gente que presta - está lá em cada um, amortecida talvez, o que, ao mesmo tempo, alivia e aprofunda a tristeza: é totalmente da ordem do indecidível, e eis um limite que só a literatura de qualidade consegue ser certeira ao apontar. A ternura em cada um de nós, entretanto, não é suficiente para de todo livrarmo-nos da claustrofobia de vários nós enclausurados nas noites chorando.

É Carrafa e seu indecidível aforisma: “Nessa de amores estelionatários, / meu coração decretou falência”. A falência quando a moeda são amores estelionatários será alívio ou tristeza?

Os poemas - não titulados - referenciarei pelos primeiros versos.

Em “Mariana nasceu de um aborto malfeito” são 22 versos longos narrando prostituição, violência e solidão obscenamente. Os seis últimos mostram a terna humanidade daquela em que os outros só veem uma puta abortada:  “Só para vocês saberem / A cor preferida de Mariana é azul / Seu prato preferido é macarronada / E ele é apaixonada por gatos / Adora assistir o sol se pôr / e chora com filmes românticos”.

Na prece a “Vênus”, em que “canonizaram minha boceta por 7 vezes [...] com seus paus duros, meia bomba, broxas [...] ontem por duas vezes meu cu foi extrema-unção”, cocaína, Campari, cigarros, apanhar, assassinada... a ternura de um finalístico “Olhai por nós que recorremos a vós / nos conceda o beijo da salvação / Que assim seja”.

Em “Meu útero apodreceu, mãe”, página e meia depois de violência doméstica, assédios sexuais desde a mais tenra idade e ácido na cara, até chegar em “Me coloca no colo, mãe /afaga os cabelos de sua garotinha e diz que me ama”.

“Luana é uma alcoólatra agora”, mas ao fim, depois de “empurrada até a beira da solidão e caiu”, ela “quando escalou de volta percebeu que o seu mundo nunca / mais seria o mesmo”.

Em “60 dias exilada de mim” a redenção (ou luta?) está no suicídio, mas até ele pôde ser terno, e não obsceno: “Agora o gás está ligado / e minha cabeça dentro do forno / estou sentindo cheiro de flores”.

Por fim, seria impossível escapar do que talvez tenha sido a maior inspiração de Carrafa, que deixei por último a falar: mais que obscenidades ternas e Bukowski, vemos Sam Shepard em Crônicas de motel. O Tio Tonho, primeira poesia da obra, é um liquidificador de Shepard: ela pensa, tal qual Shepard, sobre os “caras malucos e tarados” que “não dissimulam sua alienação das pessoas”; enquanto “a sorte está caindo do lado esquerdo”.

Suas “Mulheres perdidas / em bares cheios de homens” são as “Mulheres preocupadas em como os Homens as verão”, e a “garotinha” dele aparece enquanto eu-lírico dela noutro lugar, conversando com sua mãe, como ele também o faz num terceiro lugar.

As “Milhares de vozes dentro da minha cabeça” de Carrafa são as “Vozes horríveis e idiotas” de Shepard. E enquanto as vozes falam, o coração do eu-lírico de Carrafa é pendurado pra fora, tal qual o medo em Shepard, “pendurado fora de você”.

O pai da Aline de Carrafa “mora sozinho no deserto. Diz que não se adapta às pessoas” (exatamente como o pai de Shepard em seu relato de 4/79 em Santa Fé, Novo México). Ao que se segue a reflexão “As pessoas aqui se tornaram as pessoas que estão fingindo ser”, o fim de um verso em Carrafa e, ao mesmo tempo, uma poesia de Shepard em 27/7/81, Los Angeles, Califórnia.

São, por fim, ambos - os eu-lírico e narrador de Carrafa e Shepard - viciados em Valium com vinho branco e ficam putos da vida porque não conseguem escrever. No caso, eu também. Mas estive feliz porque ler Ingrid Carrafa, assim como ler Shepard e Bukowski, faz-nos escrever - assim como escrevo esta resenha -, suturando com poesia nossas cicatrizes emocionais.

E se aponto tantas semelhanças entre Shepard e Carrafa, não é para retirar-lhe a originalidade. Primeiro, porque originalidade absoluta não existe e, portanto, não pode ser tirada - mas isso é pauta para outro texto. Mas principalmente porque Carrafa alça voo por cima dos ombros de Shepard, inclusive atualizando-o: tanto para o local - as referências espaciais de Carrafa são notadamente capixabas -, mas trazendo-lhe a tão mencionada ternura. Shepard teve a oportunidade de passear por seu país e constatar a devastação social de seu mundo. Carrafa, na obra, presenciou e constatou a claustrofobia obsedante de estar encerrada por essas terras, mas no seu exercício maníaco-compulsivo com a escrita, em meio a tanto mais-do-mesmo, cavou fundo, remexeu vômitos, e encontrou a ternura.

Postos à última poesia, sua obra encerra com uma cena: uma visão. Ela [também] encena uma visão, que não se encerra. Eis, pois, o convite a percorrer a obra em busca dela.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim