Renan Peres Ferro nasceu em 1997. Para este professor de português e mestrando em Estudos Literários da UFES, tal informação é de importância para se começar a entender o texto do autor, que estreia 2020, em plenos tempos pandêmicos, com um recolho de 35 poemas: sua geração pertence aos nativos da Internet, àqueles que dominam os códigos virtuais e se movem de rede em rede, entendendo e vivendo a realidade, portanto, por meio de fragmentos. São o primeiro produto mais fidedigno do nosso Contemporâneo, aqueles que começam a modificar valores laborais, sexuais, afetivos, ousando questionar uma sociedade acometida por doenças da alma. Desta feita, o livro não poderia ter melhor título: Sintomas.
A obra, editada pela Pedregulho, de Vitória/ES, é dividida em duas partes: 1) “Réquiem e poemas de liberdade”, com 23 textos; e 2) “Poemas de amor pagão e só”, com 12. Segundo Guilherme Medeiros, também mestrando em Estudos Literários pela UFES e amigo do autor, em um suculento posfácio, réquiem “significa repouso ou descanso e costumava ser o nome dado às cerimônias católicas de prece e louvor aos mortos”; pagão, do latim paganus, “antes de ser utilizada pelo cristianismo para designar os politeístas ou qualquer um que não houvesse sido batizado, [a palavra] referia-se à pessoa que vivia em uma aldeia, à pessoa rústica”.
A escolha, à guisa de uma sistematização, mostrou-se acertada. A primeira parte, de fato, soa como um réquiem e, ao mesmo tempo, um libelo em prol de uma identidade. O poeta começa querendo demarcar seu território poético, afirmar sua existência:
alguma parte
que permita à minha voz
a transformação
do sussurro
em vendaval
E como alguém que ousa falar de seu tempo, de dentro dele, o jovem poeta traz não apenas palavras, mas símbolos gráficos que geram um texto imagético, típico de uma geração de olhos treinados pelas telas de computador e smartphones, de jovens que não conseguem se desvencilhar de uma ancoragem com a imagem para além do signo linguístico, gerando uma riqueza de significados tão necessária à poesia:
eu, sem lira a liberdade às nossas custas
(mudo protagoniza no corpo colonizado
mas não cego) [do texto]
(...)
Da segunda parte da obra, destaco uma palavra, especificamente: “amor”. Percebo, nesta geração, uma necessidade em ser amado que se coaduna com a da liberdade de expressão, neste livro, esta, colocada como uma consequência daquela. Um inchaço do superego ou um reprocessar do afeto? Certamente, o amor, aqui, está longe de um “encontro de almas”, como soía ao amor romântico, mas um campo de indagações e desejos sem resposta: num mundo em que tudo parece se resolver por aplicativos, buscar o verdadeiro amor, o sentimento mais puro, mais fecundo, se torna algo tão difícil quanto a tentativa do poema:
esta zona de conflito
entre o corpo e
mente, se faz deque –
está no antro da
tribulação: espaço físico
preenchido pela forma
caos fremente.
o medo, superabundante
morador líquido em extensão,
se choca enfático, veemente
(revolta insalubre: momentos
latentes de sol e súplica).
(...)
Há, no entanto, o desejo de ser amado, de ser ouvido, de existir e, também, da completude – e uma imagem que nos faz pensar em “tempos líquidos”. Tudo parece busca e aqui entendo a necessidade de um sublime, cujo encontro se torna dificultado cada vez mais pelo fragmento: vivemos em apartamentos, condomínios fechados, isolamentos, lockdowns. Vivemos a sociedade do medo. Tudo é feito para nos adoecer. Tudo é sintomático deste estado de coisas:
i.
olhar para o interior da casa com olhos de cidade
descobrir a etimologia do vazio
ii.
olhar para uma cidade com olhos desocupados de suas casas
encontrar nelas interseções nulas
(...)
iv.
a cidade corteja a solidão
luto é argamassa que impede
a saída do que está contido
quando aquece
(...)
xv.
sintomas do tempo
ignoram as multidões da cidade
sem conscienciosidade
ventam sós no confinamento
O jovem poeta Renan Peres termina sua obra, aliás, apontando esse(s) sintoma(s). Um trabalho que dialoga com o que anda se produzindo não só no Espírito Santo, mas neste Brasil tão ligado em rede e cada vez mais nestes tempos pandêmicos. Um livro para o agora, mas, principalmente, para o devir. Ouso afirmar que Sintomas ainda será revisitado, daqui a muitos anos, não como um conjunto de manifestações crônicas de uma geração, mas como récipe destes que, querendo conquistar seu espaço, ousam deixar registrada a sua voz.
Anaximandro Amorim: professor, escritor. Mestrando em Estudos Literários da UFES. Membro da Academia Espírito-santense de Letras. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Membro da Academia de Letras de Vila Velha.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.
Editor responsável: Anaximandro Amorim