Ressurreição das Caveiras (seguido de Pele, Peau, Piel), de Marco Kbral e publicado pela Editora Cousa, é uma obra de poemas bastante curta, mas que me fez pensar mais um aspecto sobre a questão da transparência radical quando emitimos qualquer opinião sobre um texto (ou sobre qualquer coisa). Há resenhas de outras obras que já li por aí espalhadas que, por vezes, entristecem-me ver que o resenhista deixou de apreender e comentar vários elementos interessantes (ao menos para mim) inseridos no texto, o que nos impõe uma dúvida: terá o resenhista deixado escapar tais leituras? ou as terá considerado menores para não serem comentadas? como fica o gosto estético nisso tudo?
Esse presente de Marco Kbral reviveu em mim esses questionamentos, vez que sou leigo no que talvez seja o elemento central da obra: o vasto universo das religiões de matrizes africanas. Estaria eu, então, apto a resenhá-lo? Se o faço displicentemente, incorro no risco de diminuir uma grande obra por eu não a ter alcançado. O homem é a medida do mundo. Não fotografamos com nossas máquinas fotográficas, mas com nossa cultura. Todo conhecimento perpassa, antes, o sujeito do conhecimento (ou a falta dele) e sua ética.
Ao mesmo tempo, é-me aversivo pensar na ideia de banir de qualquer diálogo os leitores leigos. O mundo não é dos especialistas. O mundo é de todos. Eis que opto, portanto, por declarar-me enquanto sujeito antes de falar qualquer coisa (um leigo aqui), mas falar assim mesmo e pedir que todos falem. Transformo minha resenha num misto de resenha e ensaio sobre o ser humano e, assim, podemos seguir numa prosa boa, por onde eu der conta de seguir, que é só uma pequena parte dos vários percursos que o autor nos permite.
Ao Marco, então.
O gênero de Ressurreição das Caveiras é poético, mas dispõe-se em atos e é profícuo em elementos de cores, sensações e sinestesia, para acompanhar a apresentação do Anaximandro Amorim. Dramático, pois. E, em sendo dramático, a poesia ganha enredo, ganha uma vida daquele tipo que pode ser descrita quase narrativamente perante os nossos olhos. Aquilo que, em tese, a poesia não tem, passa a ter. A poesia - que talvez estivera aparentemente morta, sob algum aspecto, numa contemporaneidade que dá mais circulação a outros gêneros e propostas - ressurge das caveiras.
O enredo - já o posso dizer dele ainda que falando de poesia - mostra um ciclo perpassando o homem: da Caveira (ato I), passando às Marias (atos V e VI) e às Almas (ato VII), até a natureza, representada por Omulú (ato final). Algo do ciclo que a cosmopercepção cristã-ocidental, talvez, não acompanhe da mesma forma: a eternidade não se completa num plano externo, mas retorna à terra: terra em que “finquei raiz”, terra “minha morada”, terra “beleza, flores, palha… / infinita natureza”. A mesma terra já repetida desde o terceiro verso do primeiro ato e já instanciada nas mentes dos leitores por mera associação (caveira - terra).
É a partir dessa circularidade que o divino “nada carne” se aprochega do corpo. E qual será o limite entre o âmago de alguém, seu corpo, interno; e o divino, exterior, senão a pele? Sugestivo para a sequência do projeto que, mesmo que originalmente talvez tenham sido produções independentes, comunica-se proficuamente. Só que a noção de circularidade é tal que o divino exterior ele-mesmo internaliza-se. Seja na natureza biológica do ato final de Omulú “que dizima e faz brotar” na “infinita natureza”; seja enquanto conceitos abstratos, uma ética de vida, internalizada em nós “narcisos de paz”.
“Pois se vida é vida, / ela se faz contínua / em seus diversos ciclos / e meandros”.
Em Pele (Peau; Piel, nas traduções), Anaximandro também nos antecipa: “uma poesia que se quer sensação”, “um sagrado-profano que quer se redimir para ter, de novo, essas sensações”. As conexões com os atos do cortejo anterior já se mostram em símbolos com o palo Santo já ao primeiro poema, que encabeça também o título do conjunto: “Piel”.
Como o prefaciador já muito tratou do estrato sensual, intimista, de Pele enquanto limite e tato, arrisco-me em outras impressões que conversam com a Ressurreição das Caveiras. A pele é barreira, mas é também permeabilidade. As caveiras que lá ressurgiram ganhando peles não se tornaram impermeáveis “para um novo lar de encantamentos” exatamente graças à cosmopercepção da circularidade, que para além da noção de ciclo, nos remonta à noção do contato e da troca inevitável: todos os pontos de um círculo se conectam, porque é linha única sem ser linha; é traço, “que te delineia / e esculpe”.
Esse elemento indecidível, limítrofe permeável existente inclusive no que é barreira (e que estabeleceria a diferença), também é tônica importante de Marco Kbral. Afinal, “Quem disse que homem não é feminino? / Tanto o é em gênero e generosidade / que tem no nome a rainha das flores”.
Pele é a “construção de um grato entrelugar”. Quem o quiser ler e desfrutar, prepare os olhos, mas também prepare a boca, para receber oh! poesia nossa de cada dia.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.
Editor responsável: Anaximandro Amorim