Breves notas quase-literárias

Marcela Guimarães Neves

 

(...) Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

Fernando Pessoa (1)

É de uma aldeia cálida da América do Sul, mais precisamente da cidade de Colatina, a dita “princesa do norte espírito-santense”, que partimos, por meio da leitura de Breves notas quase-literárias, (2) do magistrado, historiador, escritor e professor Getúlio Marcos Pereira Neves, para uma deliciosa viagem rumo às terras de além-mar.

O ponto de partida, embora resplandecendo os encantos de seus famosos crepúsculos, conta-nos sobre uma época em que, para garantir o bom funcionamento de certas atividades estatais, não se dispensava o “recurso ao Colt.” (p. 12)

Munidos, portanto, de entusiasmo e curiosidade para saber aonde essas andanças nos levarão, paramos nos ladrilhos coloniais de Portugal. Com efeito, para além da imagem dos típicos azulejos portugueses, saltamos numa Lisboa acadêmica, deparamo-nos com a generosidade do autor para com a formosura das jovens e modernas lusitanas e percorremos as suas muitas caminhadas pelas vilas “trás os montes”.

Como na música de Chico Buarque, “foi bonita a festa, pá”. De fato, as notas quase-literárias de Getúlio Neves revelam-se também quase-musicais, pois delas ressoam os sons da “imensidão líquida” do Rio Tejo, os cantos dos novos fados - certamente inspirados nas canções da grande diva Amália Rodrigues - do farfalhar de páginas folheadas nas livrarias lisboetas, além das conversas sobre o tempo e outras amenidades regadas a doses de ginjinha, tradicional aperitivo português. E tanto a terra como o mar de Portugal encontram refúgios de pura beleza nas crônicas de Getúlio Neves.

Como interroga em versos Florbela Espanca, escritora portuguesa de reconhecido talento: “Donde vem essa voz, ó mar amigo?/ Talvez a voz do Portugal antigo/ Chamando por Camões numa saudade.” (3)

Ainda que em tempos mais modernos, as crônicas da obra Breves notas quase-literárias não deixam de ouvir a voz desse antigo Portugal. Em seu trajeto pela vastidão das terras lusitanas, Getúlio Neves não só nos faz conhecer a cultura local e suas tradições, bem como nos brinda com fartos e profundos ensinamentos acerca da história desse país, o que não deixa de ser um importante traço de nossa própria história.

De volta ao Brasil, o autor nos conduz a uma outra graciosa aldeia, de nome Vitória, denominada assim, haja vista ter sido na “Vila da Vitória” que se deu a conquista definitiva desta ilha selvagem pelos portugueses, como nos ensina o autor, com toda a sua magistral didática de professor e historiador.

Em “Terra Brasilis”, a trajetória é percorrida de modo a estreitar laços, sobretudo laços de amizade com pessoas e instituições capixabas importantes, como é o caso da Academia Espírito-santense de Letras, da qual é um dos acadêmicos imortais, bem como do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES), do qual é hoje o presidente.

E é falando, descrevendo e contando as memórias sobre seus fraternos amigos que as notas do autor transbordam um caráter verdadeiramente literário, visto que os encontros relatados reverberam a emoção, a riqueza e o encantamento que percebemos nos melhores textos da literatura mundial.

Os amigos do Sabalogos, grupo literário que se reunia todos os sábados na saudosa Livraria Logos (e peço licença ao leitor para expressar meu orgulho em ser filha de José Neves, um dos fundadores do grupo), os companheiros do Instituto Histórico e Geográfico, passando pelos componentes da banda Urublues, da qual Getúlio Neves foi o guitarrista, além de colegas escritores e historiadores, todos são poeticamente lembrados pelo autor das Breves notas.

Da liberdade literária dos “sabalogues” (Renato Pacheco, Pedro J. Nunes, João Bonino, Sérgio Bichara, Francisco Grijó, Anaximandro Amorim, Reinaldo Santos Neves, Luiz Guilherme Santos Neves, entre outros expoentes da literatura capixaba), que ainda hoje traz a “lembrança do tempo que passa e da amizade que fica” (p. 29), colhem-se os frutos de uma preciosidade lírica em trechos como o que questiona a morte do amigo poeta José Hygino de Oliveira (p. 41):

Por que todos lamentam a morte do poeta? Talvez porque, numa imagem batida, o poeta morto leve consigo um pouco da luz que iluminava os dias de quem o lia. Um pouco da luz que simples estrelas não podem derramar sobre os dias, estes muito mais difíceis de serem vividos que as noites, mesmo as mais estreladas.

Ora, pois. É de saudade que nos falam as inesquecíveis notas do autor; uma palavra tão cara à nossa língua portuguesa, visto que é só nossa. Saudade é a matéria fina destas brilhantes crônicas de Getúlio Neves. Uma saudade lusitana e outra bem brasileira, uma vez que, parafraseando o já citado compositor Chico Buarque, se esta terra ainda não cumpriu seu ideal, herdou de seus antepassados portugueses o pendor para a nostalgia na forma de um belo fado tropical.

(1) “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.  Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).  - 46.

(2) Instituto Histórico e Geográfico, Coleção Almeida Cousin nº 56, Vitória, ES, 2019.

(3) Poema “Vozes do mar” - Poesia de Florbela Espanca – vol. 1: 297,  Livro de bolso – 1 novembro 2002.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim