A única coisa que fere é manhã pós-amor

Marcela Guimarães Neves

Manhã cinzenta de domingo. Chove lá fora e aqui. Inauguro o dia brindando ao alvorecer com uma xícara de café amargo. A doçura ficará para outro dia mais quente. O desfecho do relatório da semana me aguarda, ranzinza, na mesa de trabalho. Back to work. Sento-me em frente à tela do computador. Seus ícones coloridos disfarçam a sisudez obrigatória da vida de escritório. A casa virou home office. Mais um gole de café-cowboy e me sinto pronta para o bang-bang da vida. Nem tanto, afinal, hoje é domingo.

Meu olhar de soslaio percebe outra saída para este dia sombrio. O livro A única coisa que fere é manhã pós-amor, de Aline Dias, reverbera como uma luz em beco escuro naquela manhã cheirando a tailleur e salto alto. O título chama a minha atenção. Manhã de domingo tem a cara do pós-amor de sábado. Convencida pelo título, leio a orelha do livro e dou-lhe um puxão. Como assim a bela moça aprendeu a chorar este ano e vem me falar de pós-amor? Com a curiosidade ainda mais aguçada, leio a primeira página na qual a autora me responde: “Mas hoje não vou narrar fatos. Estou toda sensação. E falta.”

A captura foi imediata. Aline Dias me lança em seu labirinto de emoções. Esfíngica, sinto que a escritora me devorará se eu não conseguir decifrar seus endiabrados enigmas que só encontram fim na contracapa do livro. Vejo uma Teresinha bagunçada em seus amores (p. 11), ouço a mulher que sabe o amor pelos dedos ou que o aprende de ouvido (p. 14), ou ainda aquela que, aos dezesseis anos, já grita que falta a mesma vida que lhe sobra (p. 15).

Caminho um pouco mais por entre as páginas que me alertam sobre o anel de vidro de um amor barato (p. 19). A receita da autora é dica rápida e certeira: “Amor barato. Barata a gente mata com chinelo e vassoura. Eu não tenho medo, não.”

Em sua prosa poética ou em seus poemas prosaicos, Aline Dias também conta o cotidiano dos amores alcóolicos dos bêbados do centro da cidade, partindo embriagados rumo a um banho de mar em Jardim Camburi (p. 25). Mas a saída não está nos outros; não, a chave que abre a gaiola está dentro desta jovem autora que se diz passarinha, cigana, escola de samba. (p. 35)

Is this real life? (p. 63) Com essa pergunta profundamente simples a autora mostra a alegria de quem reconhece sensações deliciosamente juvenis, gastando o tempo que lhe sobra talking bullshit and falling in love, sofrendo por amores de verão, amores de Carnaval, amores sem correspondência. Como a personagem Minne, a ingênua libertina de Colette, vendo sofrer um de seus affairs, compreende que “a dor é capaz de incendiar os sentidos, e que ele, sem dúvida, terá de amadurecer muito para sofrer com pureza.” (2019, p. 47)

No fim do labirinto, o Minotauro do pós-amor, o bicho feérico e descontrolado que reaparece na contracapa da obra, exige que o amor pesado, o amor guitarra que agride de tão bom (p. 21) a deixe armada para enfrentar a saudade que, suave, muito leve pousa. Como afirma o grande filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em sua obra A genealogia da moral (2017, p. 20): “A felicidade está no crescimento da originalidade individual”. De fato, o segredo do enigma é revelado quando se percebe que as experiências da autora fizeram-na crescer em luminosa autenticidade, devolvendo-lhe as lágrimas que este ano recomeçaram a brotar no rosto nitidamente feliz, ao que se nota pela foto na orelha do livro, pois elas nunca dizem goodbye, just bye (p. 64).

Suave coisa nenhuma.

Referências

DIAS, Aline. A única coisa que fere é manhã pós-amor. Vitória : Cousa, 2017.

COLETTE. A ingênua libertina. Rio de Janeiro : Ed. Nova Fronteira, 2019.

NIETZCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Rio de Janeiro : Vozes, 2017.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim