A euforia do corpo - poemas de desejo-decidido

Andréa Gimenez Mascarenhas

O que é um corpo? Pensar o corpo na contemporaneidade não é tarefa fácil. Se por um lado temos uma apologia a um ideal do corpo perfeito, recortado e preenchido pelos procedimentos da medicina estética que “harmonizam” num efeito de apagamento das diferenças, por outro lado, com o advento da virtualidade, temos a abolição do próprio corpo de carne e osso. O encontro com o corpo do outro pode ser facilmente substituído por um encontro virtual, um aplicativo, um site, um “Eros eletrônico”, realizando plenamente esse imaginário contemporâneo da perfeição narcísica e da destituição da alteridade.

É por esse caminho enigmático e limítrofe, o território do corpo, que o escritor Anaximandro Amorim vai nos conduzir poeticamente em seu décimo livro, quarto de poemas. Amorim dialoga sobre a temática das corporalidades com o filósofo francês Jean-Luc Nancy, pensador que tem por referências o psicanalista Jacques Lacan, além dos filósofos, Nietzsche, Heidegger, Bataille, entre outros. Vê-se por estas referências, a densidade dos poemas deste instigante livro.

Há que se ressaltar também, o primoroso prefácio da escritora Renata Bonfim, onde se lê “O corpo como senda e condição para o ser”. Bonfim destaca o caráter circular do texto: “O movimento circular do texto enseja um reinício, a ‘queda’ torna-se uma espécie de senha para novas viagens e descobrimentos”. As palavras de Bonfim encontram ressonância em George Bataille, que irá dizer: “O erotismo é, na consciência do homem, o que nele coloca o ser em questão.” (BATAILLE, 2021, p.53).

No prólogo, Jean Luc-Nancy anuncia que “Nunca há, portanto, um corpo sem outros corpos” e Amorim responde:

Rede de arraia
que se arrasta sobre
rede de arraia
deixando pedaços
de pele sobre as unhas
transforma
morada de espírito
em bordel de baixo meretrício?

Revela-se uma atmosfera de sensualidade para o que ainda está por vir, aguçando os sentidos na imaginação do leitor. Uma estética impressionista de luz e movimento cujo objetivo é capturar o instante que não pode se repetir. Entrelaçamento de tintas e corpos feitos com pequenas pinceladas pelas mãos do artista-poeta diretamente na tela do desejo.

É imagem-corpo que
decanta a luz da tarde
como pintura da profanação:
ela, pernas abertas,
feito um Coubert,
eu, pincel na mão,
reproduzindo o instante
numa brincadeirinha de Deus,
quando, de repente,
 ela me diz:
- Mas a gente não morre, no final?

O poema que dá nome ao livro, “A euforia do corpo”, diz: “O corpo é uma loucura!/ Despido de seus pruridos, dos seus cílios, ele é a massa plástica do insípido./ Prosaico como uma maçã, ainda que, potencialmente, sempre fruto do pecado./ Uma deliciosa contradição para a boca, as mãos e tudo mais o que se deseja comer. [...]” Percebe-se nestes versos, a imbricação das noções de erotismo, interdito e transgressão como vai desenvolver George Bataille em seu livro, O erotismo.

O espírito humano está exposto às mais surpreendentes injunções. Incessantemente ele tem medo de si mesmo. Seus movimentos eróticos o aterrorizam. A santa se desvia com pavor do voluptuoso: ela ignora a unidade entre as paixões inconfessáveis deste e as suas próprias. (BATAILLE, 2021 p. 29)

Existe algo neste corpo eufórico que transborda, excede a qualquer tipo de contenção, um corpo pulsional, substrato para o desejo: “O corpo é uma tentação!/ Não há corpo sem libido/ Não há corpo sem prurido / Não há nada que possa comprimir/ a expressão do desejo/ [Nem patuás, nem qualquer amor pelo avesso] / O homem é feito de carne/ ossos, músculos e vontade [...].

Freud em 1915, no texto: “As pulsões e seus destinos”, sistematizou o conceito de pulsão como aquilo que se situa na fronteira entre o anímico e o somático, alertando para o caráter de sua inexpugnabilidade. As pulsões sexuais, de acordo com Freud, poderão ser sublimadas, recalcadas, revertidas em seu contrário ou retornarem ao próprio eu, porém, jamais poderão ser extirpadas. “Aquilo que cala mata”. O corpo poetizado por Amorim parece situar-se nesta fronteira, “Na fresta da palavra”, um corpo pulsional.

Na fresta da palavra

Um mundo suave
Escorre língua afora
- seu afago –
Rio que brota
Na fresta da palavra
Braços abertos de reconstruir o mundo
Aquilo que cala,
mata.

Para quem acompanha a obra de Amorim, vislumbra um notável amadurecimento, não apenas na forma e cuidado com a escrita, mas, sobretudo, em sua liberdade de criação poética. Ao escolher o significante “amadurecimento”, não pude deixar de sorrir, pensando na contradição nele contida. Explico, ou melhor, Freud explica em seu texto de (1908), “O poeta e o fantasiar”, onde faz uma aproximação entre o brincar infantil e a criação poética. Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham com a atividade lúdica. Freud conclui esse texto com a seguinte citação:

Sou da opinião de que todo prazer estético, criado pelo artista para nós, contém o caráter deste prazer preliminar e que a verdadeira fruição da obra poética surge da libertação das tensões de nossa psique. Talvez, até mesmo não contribua pouco para este êxito o fato de o poeta nos colocar na situação de, daqui em diante, gozarmos com nossas fantasias sem censura e vergonha. (FREUD, [1908] 2021, p. 64)

Assim, paradoxalmente, “amadurecer” a escrita literária, a meu ver, relaciona-se com a possibilidade de acessar o prazer infantil, o mais livre possível das amarras e censuras que paralisam o desejo. Trata-se de assumir por meio da escrita um desejo-decidido, tomar as “rédeas do corpo” e provocar no leitor o prazer da leitura. É esse o efeito do belo poemário, A euforia do corpo. Voltamos então, ao início, ao movimento circular da poética de Amorim, uma espécie de “ouroboros pulsional” da criação. Finalizo com os versos do poeta.

As rédeas do corpo

Tomar as rédeas do
Corpo
Como quem doma as palavras:
Aquilo que se expande
Ganha sentido novo.
(Liberdade é robustecer-se
Contra a bruteza velada
dos dias
até se tornar seu
próprio dono).

Referências bibliográficas

AMORIM, Anaximandro. A euforia do corpo. São Paulo: Ed. Patuá, 2022.

FREUD, Sigmund. “O poeta e o fantasiar”, 1905. In: Obras incompletas de Sigmund Freud. Arte, literatura e os artistas. 1° ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

FREUD, Sigmund. “As pulsões e seis destinos”, 1915. In: Obras incompletas de Sigmund Freud. As pulsões e seus destinos. 1° ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

BATAILLE, George. O erotismo. 2° ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim