A gente nasce com asas

“Na várzea tem cajazeiras... cada cajazeira um ninho que entre o verde e o azul oscila; mocambo de passarinho”. (Joaquim Cardozo)

A gente nasce com asas (se não era para usá-las... para quê?); logo aos primeiros arrulhos começa a poda. A palavra “não” é uma tesoura afiada. Na palma da mão há um tapa; é o instrumento da educação, dizem. Certa vez, na Bienal de S. Paulo, uma obra me abalou “deverasmente” - como diria Odorico Paraguaçu na TV de priscas eras - na pintura: uma criança, ainda em fraldas, carregava sobre a cabeça imensa mão fechada com o indicador em riste a apontar obrigatória direção. Aquela mão pesava como uma sentença; destino traçado, carma. Doeu sentir que éramos todos nós aquele bebê.

Os adultos desinventam o voo, mas não conseguem desinventar o vácuo; enchem-no de objetos vãos que não vão aonde o voo iria. Daí, a eterna saudade de não se sabe o quê. Porém asas mal podadas tendem a crescer. Comichão nas omoplatas, anseios, buscas... nasce aqui um anjo torto, outro vai ser gauche na vida. Algum talento incubado todos têm; há que dar-lhe vida, nem que seja com chocadeira. Se tiver sorte, vira artista a cirandar na rosa dos ventos. Fazer arte é brincar travessuras, rasgar horizontes, libertar a expressão.

Lufadas de ar fresco, correntes ascendentes convidam ao voo. Asas, enfim!

Para voar é preciso, antes de tudo, aprender a ver à moda de passarinho. Do alto vistas, as coisas adquirem sua real dimensão. Felicidade é, talvez, não ter nada e sentir-se rico - no nada há um certo poder. Quem se encontra e faz gosto de si mesmo, só então, consegue ver o outro - descobre ressonâncias.

Sair da mesmice aceita é transgredir. Transgredir não é necessariamente errar: é ter seu sortimento de sonhos, não ter pejo de miquices, dar o passo maior que a perna, trocar a casaca engomada pelo casulo, enquanto no recesso se tece em silêncio a filigrana das asas. Há mais longes por aí do que a gente suspeita. Onde parece ter nada, o engano espanta - pode a alma da solidão pendurada num prego atrás da porta escapulir, vestir-se de pierrô e dançar amalucada.

Entortar palavras também pode. Desentorpece.

Agora essa chuva chovendo no molhado! Essa chuva, sim, entorpece. Fico estática. Sirvo pra nada. Nem pra voar. O bom é que não dói. Porque quando dá de doer (saudade, por exemplo)... nem vestindo casco de tartaruga.

Tartaruga vive cem anos - de solidão. Para o poeta Mário Quintana, um sapato perdido numa gare é o cúmulo da viuvez; pra mim é a tartaruguez (são tão tristes e sós, as tartarugas)...

Por falar em carapaça... meu tio chamava ele de estrupício (ele, quem? Quintana? não; o filho do jardineiro). Eu, bem pequena, nem sabia o que era estrupício - mas achava no jeito, porque o coitado parecia um trapo pendurado numa cerca - ombro caído, cabelo subindo nas orelhas e na gola puída da camisa herdada (o defunto era maior). Cheirava a molhado (não o defunto, o Estrupício). Eu morria um pouco de medo dele. Sei lá se quando crescesse virava bruxo. Era um pouco medo e muita pena. No puxar conversa ele esquivava o olhar, ora prum pé, ora pros lados, como se nem com ele... Tinha fado de solidão. Nem casco de tartaruga servia pra sua sina. García Márquez, soubesse dele, tinha usado. Acho.

Essa chuva sem fim. Contaminei de soledade! Eu queria sacudir esse torpor, começar a escrever um romance (se eu tivesse alguma ideia, fôlego e competência, e não estivesse nesse ermo vulnerável). Por isso estou desescrevendo este texto. É pra desler.

O Estrupício (já virou nome) era a lerdeza em pessoa; pra fazer ele se mexer tinha que acuar. Um dia, depois de muito acuo, foi buscar uma jaca no pé. Voltou sapecado de taturana, a pele em fogo. Ganhou bombons de meu tio, à guisa de consolo. Acho, ninguém nem nunca tinha consolado ele. De alegria tanta, destrambelhou a falar. O bombom passou a história de vida. Por um dia saiu da carapaça, graças a uma taturana. Há males que vêm para bombons...

O que tem a chuva a ver com tudo isso? Não sei; só sei que é assim. De ossos molhados me ponho a divagar o pensamento em coisas indistintas como a cortina de água que me embaça a vista. Ainda, de quebra, esta goteira dentro de minha cabeça. “Terrivelmente insistente”. Pinga pinga pinga. Ponho uma latinha de reflexões sábias para aparar os pingos mais agudos - os capazes de ferir -, não adianta; eles cantam em todos os tons. Também... pra que fui inventar de ver álbuns de retratos?! Lembrança acendida, gente saltando do passado, vivinha da silva, inesquecíveis momentos que eu tinha esquecido...

Lembrar o Estrupício, por alguma estranha analogia, foi até bom. Como desconversar.

Caramba! o que esta chuva  molhada não faz com um cristão! @#$%&*

Alguém aí, me dá um bombom?

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