A vida literária depois dos blogs

No começo era o diário. As pessoas registravam os fatos do dia a dia e depois trancavam o diário em uma gaveta com chave, para que ninguém cometesse a ousadia de lê-lo. O diário era quase sagrado. Continha suspirosas frases de amor, estremecimentos de raiva, pensamentos secretos e outras coisas mais. Não convinha que caísse sob olhos não autorizados.

Esse tipo de diário íntimo era filho dileto dos exames de consciência, com que religiosos fustigavam a alma dos pecadores. Depois passou a ser um descarrego escrito de ações e sentimentos. Funcionava tal qual uma testemunha secreta, um guardador do rebanho das dores, dos amores, das frustrações e dos sonhos. Mais tarde, os escritores descobriram que podiam usar os diários como ferramentas para capturar os leitores. Nascia o gênero confessional, a “escrita do eu”, para atender ao mercado. Afinal, os seres humanos têm verdadeira loucura para espionar tudo que cheire a sigilo e segredo.

Então veio a internet. E, com ela, os blogs. Os blogs tomaram conta da web. Fotos e vídeos se ajuntaram às palavras. Um blog costurava a vontade de alguém se expressar com a ânsia de ser lido, conhecido e reconhecido. Blogueiros crepitavam por todos os lados e tinham leitores fiéis. Daí até expansão de textos de blogs convertidos em livros para alcançar o mercado, congregar leitores, garantir prêmios literários foi um pulo. E a chegada das redes sociais, que ampliou as funções de exibição e obnubilou o reinado dos blogs, jogou muito mais lenha na fogueira da exposição pessoal. Não seria essa a gênese da moda da autoficção, tão em voga na literatura de agora? 

A autoficção é um avatar da autobiografia. Foi assim denominada por Serge Doubrovsky, em 1977, para referendar seu romance Fils. Faz parte da ideia de que a realidade humana, com suas maravilhas e seus horrores, ela própria é uma ficção capaz de engendrar histórias com características da vida e do autor da obra, porém situadas em um texto confessadamente ficcional. Cai bem na literatura pós-autônoma que se seguiu às regras da modernidade (e da pós-modernidade também). E que, na definição da argentina Josefina Ludmer, é aquela literatura que deixa de lado questões de gêneros, divisões e estilos tradicionalmente ditos “literários”, para se voltar sobre a liberdade de ser ela mesma.

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