A magia das coisas

Certa vez, em um poema de Carlos Nejar, li um verso de que não me esqueço: “As coisas não são coisas são esposas, caladas e ancestrais dentro da tarde”. O poeta tinha essa percepção das coisas vistas como estabilizadoras do cotidiano, nas trocas entre elas e as criaturas enquanto colaboradoras na sustentação da vida. Bate com o que escreve a filósofa Hannah Arendt em seu livro A condição humana: "O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam seus autores humanos.”"

Será que esse pensamento ainda é pertinente hoje, quando as coisas do mundo, capazes de tocar nossos sentidos e nossa sensibilidade com sua presença, são substituídas pelos fantasmas das coisas, como apresentadas no universo virtual?

Escrevo isso no meu laptop e penso que tenho uma certa melancolia saudosa, quando me lembro de minha antiga máquina de escrever, uma pequenina Olivetti  Letera 22 azul. Penso em quantas frases nela criei, quantas madrugadas me sentei diante do teclado dela, o que muito aborrecia um vizinho irascível que, invariavelmente, reclamava do tiquetaquear de meus dedos que o impedia de ter um sono tranquilo (era o que ele dizia). Eu pedia desculpas, prometia que iria mudar meu horário de escrita. Mas sabia que na madrugada seguinte estaria lá, a sós com minha máquina, quebrando o silêncio da velha escadaria onde naquele tempo eu morava. E, por certo, chateando o vizinho.

 Minha máquina era uma companheira fiel. Ouvia minhas confidências, mesmo aquelas que eu não ousava escrever. E acredito que ela me censurava ter escamoteado o registro de algumas.  “A digitalização descoisifica e desincorpora o mundo”, ensina o também filósofo Byung-Chul Han. E eu aprendo por mim mesma que, pouco a pouco, as redes sociais, a IA e toda a parafernália dos ambientes informacionais de agora vão esgarçando e tornando cada vez mais tênue a magia tangível das coisas.

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