Com oito anos de idade recebi do avô a tarefa de ler um livro, na verdade um livro na forma de dois volumes grandes. Capas brancas, com letras douradas: “Bíblia Sagrada”. Ele não precisou insistir muito para o menino começar a cumprir a missão. Na primeira folheada a descoberta das ilustrações a bico de pena reforçaram minha determinação de avançar pelas páginas. Sem dúvida aquela foi minha primeira aventura de longo curso no mundo da leitura. Era um trabalho diário, que consumiu alguns anos para que o considerasse encerrado, porque eu lia e relia, com grande prazer, as centenas de páginas naquele papel fino, quase transparente. Pouco tempo adiante caiu nas minhas mãos uma enciclopédia – não lembro o nome – onde, publicada em prosa, estava a Ilíada, também com ilustrações fabulosas. Não me lembro de quantas vezes reli o que ainda é para mim a maior aventura de todos os tempos. Na ocasião aquela adaptação à prosa foi fundamental. Só muitos anos depois é que tive condições e energia para ler Homero na sua forma original em versos, em português, claro. Acredito que a leitura da Ilíada – e da Odisseia – deveria ser um trabalho, uma coisa obrigatória, para qualquer um que se diga interessado por literatura.
Reconheço que fui privilegiado por ter um pai leitor compulsivo, que adorava contar histórias – para nos fazer dormir –, e porque as aventuras de Ulisses eram as suas favoritas: o gigante Polifemo, a feiticeira Circe, o rei Eolo, as sereias e, finalmente, o retorno conturbado, violento e um tanto sangrento do herói à Penélope, sua esposa, se destacaram entre as delícias da leitura na minha infância.
É certo que as histórias contadas pelo pai, nas noites de Porto Alegre, foram um embrião para minha vida de leitor intensivo e me guiaram à paixão pela literatura, à escrita e, como consequência, à profissão da produção editorial.
Entre as poucas compensações por ser um editor, trabalhando na produção de publicações, está a leitura em primeira mão dos originais de livros inéditos. Bem, isso pode ser missão espinhosa, porque autores esperam opinião favorável sobre seus escritos, o que nem sempre é possível. Felizmente, no meu caso, na maioria das vezes, esse trabalho tem sido um privilégio.
Então, em um dia do ano de 2016, o amigo e escritor Getúlio Neves me entrega, para leitura e provável contratação do trabalho de edição, os manuscritos do seu Périplo.
A folheada rápida mostrou um livro em forma de versos; laudas e mais laudas de versos. Pensei: logo para mim, que tenho dificuldade para ler poemas. O pensamento seguinte me lembrava dos ossos do ofício.
A primeira descoberta, assim que comecei a leitura, foi de que ali estava uma epopeia! O que me trouxe de volta as reminiscências desenroladas lá no início desta.
À epopeia pressupõe-se o contar de uma história, mas qual é esta que Getúlio narra na sua poesia épica? Boa pergunta. Respondo: ali está narrada em versos principalmente a grande aventura do escrever... versos. Sem pieguices, ou chorumelas, com perfeito domínio da ironia, o autor desencrava o fazer poesia como eu raramente vi por essas plagas. Logo percebi que o autor esteve, sem dúvida, divertindo-se na tarefa de produzir tais versos. Coisa importante, porque a escrita, prosa ou verso, precisa de alguma quantidade de ironia, uma boa quantidade.
Nas palavras do escritor, o livro “vai fragmentado em três partes que traduzem, cada uma, impressões únicas e mais ou menos lúdicas – ...impressões geográfico-reminiscentes; pseudo-apocalípticas e lítero-composicionais...”
No livro o leitor, com certeza, vai aproveitar-se da boa literatura na ótima escrita poética de Getúlio, ao mesmo tempo em que encontrará diversão com os versos impregnados de monumental ironia.
Uma amostra para o leitor que chegou até aqui:
P’ra que liricizar tais piparices?
Por que não me calar certas sandices?
Perdoa-me, Leitor, tais entrementes...
Boa leitura!