Imagine-se que é possível viajar de volta ao passado. Embarcar numa máquina do tempo e apenas com o estalar dos dedos, uma palavra mágica – ou o girar de dials no painel de controle da traquitana –, voltar a lugares ou rever ocasiões que ficaram no passado, retornar àquilo que hoje é memória. Isso seria bom?
No meu caso, se pudesse voltar até um certo dia de 1961, ao estádio Doutor Hercílio Luz, de Itajaí, em Santa Catarina – quando fui levado pelas mãos do vô Lito para ver do que se tratava o tal jogo de futebol, lá pelos meus oito anos de idade –, eu acharia muito bom! Não lembro do placar, nem contra quem o nosso Marcílio Dias jogou – bem provável que tenha sido o Almirante Barroso, rival metropolitano histórico, ou o Figueirense da capital, ou o Metropol de Criciúma (já desaparecido) –, mas a memória, um pouco nublada, sugere que vencemos. Afinal, naqueles tempos o time era uma potência no futebol de Santa Catarina (campeão estadual de 1963).
Hoje, as imagens daqueles instantes vêm difusas, de cores desbotadas, desfocadas e sem som ambiente, mas lembro bem que passei um momento em maravilha. Permanece a lembrança de boa parte do impacto nos meus sentidos do primeiro encontro com um estádio e a mágica que sempre acontece lá dentro, que leva os torcedores a participarem desse rito tribal desconectado da vida real, espécie de missa pagã inconsequente, que é o futebol. Bem nesse espírito, pelo que posso lembrar, lá estávamos eu e o primo Chico – éramos inseparáveis –, e o meu avô, no campo do marinheiro da Guerra do Paraguai, Marcílio Diaz, lutando contra seu famoso almirante, o Barroso, e vencendo.
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Alguns anos depois, recebido um upgrade, como se diz, me encontrariam facilmente no Estádio Olímpico de Porto Alegre, torcendo para o Grêmio de Football Portoalegrense, aquele do centroavante Alcindo – a Pantera de Liverpool da malsucedida seleção brasileira de 1966 –, do ponta esquerda Volmir Massaroca, do ponta direita Flecha (esse chegou a jogar numa seleção brasileira com Zico e Roberto Dinamite) e outros, que ficaram pelo descaminho da memória claudicante. Então, no lugar do Barroso e dos times catarinenses pequenos, já participava – das arquibancadas, é claro – de batalhas mais grandiosas, digamos, contra inimigos do porte de um Santos, com Pelé e companhia, Flamengo, Palmeiras e toda a sorte de times indigestos da primeira divisão do futebol nacional, com relativo sucesso. Nessas refregas, sempre acompanhado pelo amigo, praticamente irmão, Cláudio Luiz, quando não estava com meu primo e parceiro de muitas, Alexandre Appel.
Deixa estar que no meio daquele deslumbramento pelo tricolor gaúcho, por injunções profissionais do meu pai, morei por alguns meses em Vitória e aqui fui apresentado ao Rio Branco Atlético Clube por outro primo, dessa vez o Armando Borges (o que seria de mim sem meus primos?).
Numa ocasião, assistindo a um jogo do alto da caixa d'água da Escola Técnica, com pernas dependuradas ao precipício – coisa meio apavorante, o jogo foi bom, mas nem lembro contra quem –, deu-se a conexão e eu nunca mais deixei de ser riobranquense. Isso aconteceu provavelmente em 1968 e o time sobrava no futebol local e até incomodava os poderosos vizinhos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais – confirma Ivan Borgo no seu impagável Recordações do futebol de Vitória. De lá pra cá, estivesse em Porto Alegre, Rio de Janeiro, Manaus ou Niterói, sempre que podia, procurava notícias do clube alvinegro capixaba, uma espécie de ligação amorosa com uma Vitória que nunca esqueci.
Bom, agora que finalmente mencionei o livro de Ivan Borgo, lembro de que comecei este escrito pensando justamente nele, o Recordações do futebol de Vitória. Queria escrever sobre o que a sua leitura causou em meu coração, trazendo de volta recordações impressas na memória dos tempos em que frequentava campos de futebol, dos lugares, das cidades e pessoas que participaram da gênese, pode-se dizer, de um sujeito – jovem – percebendo o mundo à sua volta. Apesar das minhas lembranças não serem as mesmas de Ivan, afinal não tivemos nossa infância futebolística na mesma época ou lugar, nem por isso, agora percebo, sofremos impressões emocionais e sensoriais muito diferentes.
O futebol já há muito não é a mesma coisa, pelo menos para mim, que não tenho mais a coragem nem a energia necessária para participar da catarse tribal oligofrênica de agora. Comecei o afastamento ainda em Porto Alegre, depois que testemunhei um amigo tomar pelas costas um banho de urina, lançada dentro de um saco plástico do alto das arquibancadas. Ainda por cima, de um torcedor do nosso mesmo time. Nunca mais coloquei os pés no Estádio Olímpico.
Consegui ir ao Maracanã mais algumas vezes – meu filho era pequeno e me cabia levá-lo ao estádio no processo (bem-sucedido, diga-se) de doutrinação de mais um torcedor para o Fluminense –, mas sempre muito preocupado com a violência latente à nossa volta e exibida seguidamente nos noticiários, então desisti de vez.
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Ivan Borgo diz que Recordações do futebol de Vitória é um livro impressionista. Garante que o futebol é apenas um pano de fundo, cenário que serviu para desfiar as recordações de uma Vitória nos anos 50/60, hoje quase mítica.
Estou certo de que a maior parte dos leitores da nova edição do livro ainda não havia desembarcado nesse vale de lágrimas quando Ivan começava a frequentar, lá em Jucutuquara, o estádio Governador Bley em busca das emoções que só aquele futebol, e o amado Rio Branco A.C., poderiam imprimir no coração daquele jovem aprendiz de humanidades.