O faxineiro

“Vamos pro parque da Redenção!” Nem precisava falar. Era para lá mesmo que o bando fugia todas as tardes depois de terminar o dever de casa, incumbência da escola que a mãe obrigava a fazer, sob pena de não pôr os pés na rua. Além daqueles do prédio da rua Santo Antônio, no bairro Bonfim, outros amigos da vizinhança e até alguns do bairro da Azenha – nem tão próximo assim –, nos juntávamos perto do lago, no centro do Parque.

Isso éramos nós, o bando dos amigos de infância, naquela Porto Alegre dos idos de 1960. Garanto que enquanto permanecemos no Parque fomos felizes. Ali, durante aquele tempo, estivemos protegidos das exigências do mundo até que novos interesses, atrações irresistíveis – reconheço – nos desviaram de lá para a vida.

Mas nem tudo foi perfeito. Lembro que em 1964 sofremos uma invasão à nossa tranquilidade irresponsável. Uma sombra cobriu nossas tardes e não podíamos mais brincar descuidados, porque um perigo nos ameaçava.

É sobre esse perigo real – nada imaginário, como seria uma brincadeira infantil – que logo no início do seu romance O faxineiro, Álvaro José Silva escreve para colocar diante do leitor algo do que foi viver durante os “anos de chumbo”, como ficaram conhecidos os tempos da ditadura militar brasileira, principalmente no seu começo.

A leitura me abriu comportas da memória trazendo à tona o episódio dos rádios comunicadores – walky talkies –, saldo de uma expedição de prospecção mineral às florestas de Rondônia, que com um par deles meu pai havia me presenteado, que eram importantes nas brincadeiras de polícia-e-ladrão em nossas correrias pelas alamedas arborizadas da Redenção. Os rádios eram o tesouro do menino de onze anos de idade. “Cuidado com os rádios, filho! Os soldados podem tomar isso de vocês”, dizia meu velho, preocupado, mesmo assim sem nos falar sobre possíveis desdobramentos de um confronto com os militares. 

Havia muitos soldados armados de fuzis pelas ruas. Já tinha visto pessoas sendo cercadas e revistadas por grupos deles. Ainda levaria algum tempo para eu descobrir que além de radinhos transmissores os soldados também tiravam vidas.

Álvaro apresenta o leitor aos calabouços da repressão. Violência covarde, sofrimento e morte é o cardápio oferecido pelos psicopatas de então. O escritor não facilita em nada a vida do protagonista. O sujeito, além das memórias trágicas da repressão, do reencontro com o fantasma do seu passado, é paciente de um diagnóstico médico nem um pouco animador, coisa que o obriga a um intenso exercício de desprendimento das coisas do mundo, desse vale de lágrimas, como dizem.

O faxineiro é uma história de vingança, um conto sobre dor e perda, que se passa entre São Paulo e Vitória, entre hoje e quatro décadas atrás – 1968 –, nos tempos da repressão. É um livro de leitura quase hipnótica, impossível de largar. Um perigo para quem precisa acordar cedo no dia seguinte.

 

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