Memória repartida

O carro avançava pela estrada. De dentro do Dodge marrom o menino, com oito anos de idade, e afundado no banco de napa, conseguia ver a cabeça de cabrito metálica e reluzente – fixa no seu posto no promontório da ponta do capô do motor – mudando de direção a cada curva, indicando o novo rumo, mas sempre para a frente.

Nas janelas laterais passavam as copas das árvores e as cercas das fazendolas, os morros e colinas distantes; gado, pomares, plantações, essas coisas. Meu avô na frente, junto com o motorista, minha avó entre os dois. Nós, os outros, no banco de trás: eu, dois irmãos, o primo Chico e minha bisavó. Cabíamos? Claro, porque estávamos em um Dodge Woodie 1948, uma grande perua (stationwagon) com carroceria de madeira que meu avô tinha nos idos de 1960.

Pelas minhas orelhas entrava o alarido agudo do vento nas janelas, o ronco forte do motor americano e o barulho das rodas atacando o chão de terra batida das estradas de uma Santa Catarina rústica, naquela época, no início da minha existência, quando começava a me dar conta de que o que meus sentidos percebiam era o mundo e suas coisas. Antes disso não me lembro de nada, nem mesmo de que vivia.

Voltando ao carro. Eu vinha observando, já há algum tempo, então ajoelhado no banco e voltado para trás, a grande nuvem amarelada que corria atrás de nós saindo debaixo do carro e encobrindo a paisagem que se afastava. Subitamente o carro reduziu a velocidade, entramos em uma cidade, na verdade um vilarejo, e a massa de poeira que nos perseguia finalmente nos alcançou. Entrando pelas janelas abertas dava para sentir o gosto, o cheiro do pó e até a textura de areia dos grãos que invadiram minha boca e arranharam meus olhos. O mundo à minha volta, o vilarejo, meus avós e tudo mais desapareceram.

*

Depois do prólogo do romance de Getúlio Neves, Memória repartida, onde o narrador recebe os papéis empoeirados contendo a base daquilo que irá permear e ele, o escritor, esmiuçar até o fim e compor as páginas do seu relato, encontramos o primeiro capítulo e com ele outro tipo de pó – aí, daquele do mesmo modelo que me trouxe à memória minha infância –, quando uma personagem invade a praça da cidade no carro em velocidade incompatível com o decoro local, levantando nuvens de poeira da estrada de terra que o levou até ali, direto ao centro da narrativa de Getúlio.

Memória repartida é uma viagem no tempo, ao interior do Espírito Santo e à memória de qualquer um que tenha conhecido as estradas de terra e os vilarejos empoeirados que fizeram (e ainda fazem) o nosso Brasil ser afinal tão brasileiro. É uma história bem contada, com suspense, trocas de tiros, pistoleiros, ataques de índios bravos, ironia, sexo dentro do rio e atrás da igreja e aventura numa narrativa de qualidade literária inquestionável.

A família, os bons e maus costumes, a delinquência, o abuso e a bonomia senhorial, a subserviência e a sobrevivência ajuizada do povo são utilizados perfeitamente por Getúlio na escultura do romance de época: a da ocupação mais recente do norte e noroeste do Estado. A Vila se parece com muitas, se insinua como alguma de fácil lembrança, mas que verdadeiramente é mítica, parte apenas da fantasia criativa do autor que, é claro, não vai se importar se o leitor a transportar para seu local favorito da memória, seja isso Colatina ou outro lugar qualquer.

Com precisão cirúrgica o professor Francisco Aurélio Ribeiro, em um comentário ao autor, diz que “é um romance de costumes, policial e historiográfico”.

 

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