Antes mesmo de me instalar em Vitória eu já vinha sendo apresentado à produção literária da cidade – que aqui há aos borbotões. E não demorou nada, claro, para conhecer – pelas páginas d'A Gazeta – os escritos de Marilena Soneghet. Isso também foi algo facilitado porque ela é a cronista favorita do clã a que eu estava me agregando.
Quando me deparei com o que Marilena Soneghet escreve uma coisa aconteceu na hora: a lembrança das minhas histórias, das incontáveis peripécias que atravessei para chegar até aqui. Quem não tem uma história para contar? A maioria de nós não coloca no papel o que pensa, muito menos o que lembra, nem vem registrando a vida num diário (hábito pra lá de esperto, que poucos praticam).
Pela leitura daquelas crônicas pude lembrar da Suzi, do Roque e da Rebeca (parceiros caninos da minha infância), que me mostraram o amor fiel dos anjos – da suas breves alegrias – e das primeiras perdas, que adiante a vida me reservou muitas mais; lembrei das travessias de barco no rio Itajaí e das excursões pelas pedras na beira mar da Praia Brava; dos acampamentos noturnos nos cafundós das matas do Rio Grande do Sul; de muros escalados furtivamente, frutas colhidas e devoradas entre as ramas do alto de abacateiros, goiabeiras, ameixeiras e araçazeiros (é assim que se escreve?) nos fundos de um sem fim de quintais das casas de tios, avós, vizinhos e outros simplesmente invadidos, e por aí vai.
Caríssimo leitor – que já foi criança, viajou, amou, plantou algum arbusto e que continua fazendo o mesmo, ou tentando, e que, sem alternativa, além de seguir assim até o fim, como parte da “maldição” da condição humana – quando foi a última vez que teve a ideia de escrever sobre suas “coisas”, de transformar ao menos uma pequena parte de sua rotina em literatura? Muitos vivem tentando fazer isso, mas não é fácil.
Marilena Soneghet fala de árvores, plantas, cachorros, pássaros, vizinhos, amigos, mares, estradas, montanhas, o diabo a quatro e do coração, com a fluência do contador de histórias experimentado e bem humorado (sempre!). Narra o que lhe acontecia em lugares distantes, ou do outro lado da rua, e as divertidas travessuras amáveis (nem sempre) das suas crianças e dela mesma quando foi uma, e do que aconteceu ontem e do que é hoje. Ela é capaz de transformar em uma crônica a história de uma plantinha surgida entre os fragmentos de concreto de uma calçada quebrada, porque ali existe a promessa do florescer. Foi fácil me levar de volta a passeios por jardins, praias e quintais perdidos há muito na minha memória. Mas, diante dos meus, os passeios dela parecem verdadeiras epopeias.
Fui comovido com todo tipo de histórias entre as quase oitenta crônicas nas mais de duzentas páginas do seu novo livro, “Liberdade para o abacateiro” (Cultural-ES & Edições Tertúlia), que tive o privilégio de receber um exemplar antes de muita gente. Dos cafundós do sertão baiano – doida por um banho e um prato de comida –, até o quintal de sua casa na tentativa de resgate de um frango abocanhado, lá está Marilena Soneghet – sendo agente ou testemunha do fato. Quem nunca perdeu um guarda-chuva? Marilena e sua turma também perdiam e daí saiu uma das mais engraçadas crônicas do livro. Além de frangos ela também resgata, ou dá a mão, a passarinhos, corujas e quejandos, não importa a espécie.
Para Marilena Soneghet não há sentimento, fato, acaso, que suas letras não possam transformar em uma aventura.
Parte das crônicas que compõem o “Abacateiro” já foi publicada em sua coluna no jornal A Gazeta, mas agora, junto de outras inéditas, aparece a oportunidade de tê-las de volta organizadas, revisadas, reeditadas, algumas até remoçadas. O escritor Pedro J. Nunes, coordenador da edição, também fez a seleção e a revisão dos textos. Não posso esquecer de falar das ilustrações. O livro, uma obra gráfica de alta qualidade, além da capa, traz várias ilustrações coloridas, impressas em papel especial, realizadas pelo fotógrafo e ilustrador Paulo Paiva. Um luxo!