No bojo de uma dieta calvinista, sonho com minestras, minestrones e queijos. Com vinho também. No correr do dia vou me lembrando de comidas onde a característica principal é também a simplicidade.
Talvez a trama onírica imaginária decorra da secreta esperança de conseguir para tais comidas um atestado de inocência. Negociar com as impassíveis PPM e ML/DL dos exames clínicos um passaporte carimbado com notas de inocuidade e destino a um cardápio menos ascético.
Sei bem, fantasias de quem se aferra à lembrança de prazeres perdidos. Primeiro foi o cigarro. Agora comidas e bebidinhas. Água pode. Se aparece a dúvida? Certamente. Valerá a pena? Os argumentos porém são irrespondíveis. Um jogo sim/não onde o sim é a vida. Frutos do mar, carnes, gorduras, linguiça de porco, adeus. Queridas pizzas, arrivederci. Bom dia simpáticos repolhos, salve trigueiras berinjelas, venha um abraço, esvoaçantes alfaces.
Mas o conformismo não impede a busca da comida perdida à sombra desses dias de ócio forçado.
Aqui da cama posso até vislumbrar o anfiteatro do congresso médico onde serão discutidos novos aspectos da nutrição humana. Ali está o cientista de cabelos desgrenhados apresentando novas propostas revolucionárias. Dentre elas, a de que a polenta é muito boa para as coronárias. Há gráficos, transparências e tabelas estatísticas. Fato relevante: a polenta será ainda mais benéfica se acompanhada de leite e de uma colher de manteiga da colônia.
Absurdo? Quando criança, laranja era um veneno para quem estivesse resfriado. “Muito fria”, decretavam os doutos. Mais tarde entra em cena a vitamina C e a recomendação passou a ser a oposta: “Dê muito suco de limão e muita laranja para ele chupar” – dizia o esculápio para a mãe incrédula.
É verdade que agora já surge uma corrente que duvida de qualquer efeito da vitamina C em relação a infecções. Tais dados reforçam a ideia de que a proposta do cientista não é tão maluca assim. Demandaria verificação.
Para os que acreditam em cânones fisiológicos imutáveis, lembro Heráclito de Éfeso, pai da dialética materialista, dizendo que você não pode atravessar um rio duas vezes porque numa segunda vez nem você nem o rio serão os mesmos. Daí...
De minha parte torço para que a proposta seja vitoriosa, especialmente pela simplicidade franciscana da polenta. Não há prato mais humilde: fubá, água e sal. Frise-se que a sábia manipulação dessa tríade bendita é fundamental. Uma manipulação desastrada equipara a mistura a comida de pintinhos de quintal. A manipulação correta a coloca num patamar de iguaria rara.
Nem mesmo é necessário que a polenta seja cortada com linha como fazia minha avó e manda a tradição. Pode cortar com faca mesmo. Experimente e estou certo que você vai olhar com desdém para Apício Célio por não ter incluído a polenta em sua Arte Culinária. Ao menos sob esta forma de absoluta simplicidade.
Animada pelo precedente aberto, açulada pela minha imaginação faminta, surge agora num canto do quarto, igualmente calçando as sandálias da humildade, ninguém menos que a feijoada. Absurdo dos absurdos?
Humildemente a feijoada pede meu testemunho e solicita meu parecer quanto à injustiça e generalizada opinião de que se trata de um prato pesado. Absolvida. Jamais me senti pesadão ao comer esse delicioso prato da melhor cozinha brasileira. A feijoada tem um excelente currículo na minha experiência pessoal e, por isso, é mais do que justo que tenha também sua chance nesse esperado mas infelizmente hipotético congresso médico renovador.
No futuro a comida poderia ser apenas uma substância sintética? Uma substância que contivesse todos os sabores das boas comidas do mundo? Da feijoada, passando pelo camarão da nouvelle cuisine e por toda a cozinha internacional até a moqueca capixaba, tudo resumido em pastilhas de valor calórico nulo?
Acho a ideia problemática. Em matéria de gosto unificado me lembro de certo jantar com um anfitrião italiano. A pequena trattoria era famosa por algumas especialidades de massa. Enquanto bebíamos vinho, no antepasto, o italiano fazia detalhadas considerações sobre o prato que nos sugeria experimentar: tortellini.
Chegada a sopa fumegante, um dos convivas, ao prová-la, talvez impulsionado pelo excelente vinho, disse as palavras fatais: “Para mim, toda essa comida italiana é sempre o mesmo macarrão.” O italiano, que acabou ouvindo tal parecer, lascou um olhar fulminante que passou por mim como um raio, por pura sorte desviou-se daquele conviva e ao bater na parede oposta não sei como não tirou um pedaço do reboco.
Pelo exemplo, vê-se que mesmo quanto a um simples macarrão genérico haveria dificuldades. Os nacionalistas exacerbados seriam obstáculos difíceis de transpor.
Ao fim e ao cabo, é uma pequena tortura pensar em todas essas comidas e ficar maquinando ideias vãs deitado aqui na cama diante de meu zerificado almoço.
Como consolo lembro outra vez de Heráclito de Éfeso que disse: “Se a felicidade estivesse nos prazeres do corpo, diríamos felizes os bois, quando encontram ervilha para comer.”
É sobretudo conveniente acreditar nisso.