O infante e o silêncio do Dr. Gomes

Um capim arroxeado tomava as margens da estrada de terra. O automóvel, um velho Ford de capota de lona, aberto dos lados, ia passando no meio desse capim que batia em nossos rostos e braços provocando uma coceira bem forte. Num trecho longo, a estrada de terra corria em paralelo com a estrada de ferro da Leopoldina Railway, embora esta ficasse num plano mais elevado. Aliás, coincidiu que, naquele dia, enquanto passávamos de automóvel nesse trecho, vinha passando também o Noturno procedente do Rio de Janeiro. De repente, desprendeu-se uma batelada de brasas da fornalha do trem que, por pouco, não caiu dentro da cabine do nosso automóvel. Isso aconteceu pouco antes de chegarmos a Melgaço. Quando chegamos lá, o Dr. Gomes pediu ao Venâncio que parasse o carro diante de uma casa.

Paramos.

A casa tinha um muro de tijolos vazados e, por cima dele, se assentava uma roseira sem flores. O Dr. Gomes parou na frente da casa, junto de um portão de ferro e bateu palmas. Ninguém apareceu. A tarde já fazia grandes poças de sombras no morro ao fundo da estação ferroviária. Por causa do frio, as ruas de Melgaço estavam desertas. Raramente passava uma pessoa, sempre enrolada em lãs e capotes. No momento, ia passando um senhor grisalho e o Dr. Gomes lhe perguntou se ele por acaso sabia se havia alguém naquela casa. Esse senhor ficou olhando o Dr. Gomes por alguns segundos, fez um ligeiro movimento com os ombros mas não disse nada. Depois continuou a andar. O Dr. Gomes voltou para diante do portão de ferro e continuou a bater palmas diante da casa toda fechada. O Venâncio se debruçou sobre o volante e passou a cochilar. A noite vinha chegando. O frio aumentava, e o Dr. Gomes tinha desistido de bater palmas. Mas não desistiu de ficar ali. A casa tinha uma barra tipo enxaimel no beiral, o que lhe dava um certo ar amistoso. Mas isso era anulado pelas janelas. Muito altas, estreitas, muito cônscias de sua verticalidade. Uma severidade complementada pelo olho circular que nos observava do alto da parede, na fachada. O efeito severo também não chegava a ser quebrado pelo pequeno jardim com duas buganvílias encarnadas que se apoiavam numa grade de ferro bastante corroída pela ferrugem.

O Dr. Gomes estava agora sentado nos degraus de pedra da entrada principal da casa. O Venâncio começou a roncar dentro do carro. De minha parte, aproveitei para olhar mais de perto uma pilha de dormentes ao lado da estrada de ferro. Os dormentes estavam empilhados como uma fogueira de São João e neles estavam escritas várias palavras numa língua estranha misturadas com listas em verde e amarelo.

Não demorei a voltar para perto da casa. Lá continuava o Dr. Gomes, em silêncio, fumando. Essa situação demorou até o momento em que não consegui mais ver o Dr. Gomes na escuridão. Só via a brasa de seu cigarro. Mas logo depois comecei a ouvir outra vez o som de suas palmas batidas com mais força. A casa permaneceu fechada e escura. Ninguém apareceu. A seguir, o movimento da brasa do cigarro na escuridão indicou que ele havia finalmente desistido de ficar ali. O Venâncio acordou um pouco assustado quando o Dr. Gomes entrou batendo com força a porta do carro. Fiquei no banco de trás.

Tentava amar uma explicação para aquela atitude do médico com as poucas informações que tinha. Sabia, por exemplo, que o Dr. Gomes estava muito abalado por causa da morte da Mafalda Ferrari, sua paciente de alguns anos e moradora da localidade de Verdemiglio, onde moravam meus tios e onde estava passando férias escolares. Durante três dias a população do lugar acompanhou a luta do médico para salvar a Mafalda de uma hemorragia do estômago. Sem sucesso, porque naquela tarde ela havia morrido. Minutos depois da morte de sua amiga, o Dr. Gomes, com o rosto muito carregado, foi procurar o Venâncio para alugar esse carro a fim de voltar a Campos Verdes, onde morávamos. Como já estava cansado dos sapos e grilos de Verdemiglio, despedi-me de meus tios e pedi ao Dr. Gomes que me levasse com ele no automóvel. A única coisa que ele disse foi “claro”. Agora penso que esta foi também a única palavra que ele falou daquele momento em diante até nossa chegada a Campos Verdes.

As luzes dos faróis do Ford de bigode batiam nas margens da mata e, de vez em quando, uma ave noturna cruzava na nossa frente. Muitos mosquitos e mariposas ficavam grudadas no para-brisas. O barulho das explosões secas do motor do carro ia se sobrepondo e abafando os pequenos barulhos da mata absorvida em sua rotina natural. Ninguém falava nada. Nem quando vimos as luzes elétricas da cidade de Campos Verdes, ao chegar nos altos do Schmidt – uma vista bonita – nenhum de nós falou qualquer coisa. O Dr. Gomes, velho amigo de nossa família, era de costume bastante seco, embora, como era consenso, se dissesse que jamais se podia adivinhar o tipo de coração de manteiga que havia debaixo daquele cimentado que ele armava para se defender não se sabia exatamente de quê. Por isso, naquelas circunstâncias, achei melhor não fazer perguntas porque ele estava mais distante do que nunca e o cimentado de concreto claramente intransponível. Para mim ficava claro que ele precisava falar com urgência com aquela pessoa em Melgaço. Mais tarde fiquei sabendo que se tratava de sua namorada. Amante, retificou aquela moça de uma forma quase ríspida, a voz carregada com uma indisfarçável ponta de amargura. A verdade é que a morte da Mafalda, o desencontro com sua namorada/amante em Melgaço pareciam fechar o Dr. Gomes num fundo poço de silêncio.

Quase ao chegar a Campos Verdes, tive a vontade de oferecer a ele a contribuição da minha própria tristeza. Afinal, não tinha ido nada bem na escola naquele ano e também estava triste. Misturar nossas tristezas talvez valesse a pena para tentar diminuí-las.

Mas nem eu e nem o Dr. Gomes falamos nada O carro chegou a Campos Verdes, nos despedimos e cada um foi para seu lado.

Publicado originalmente no livro Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.

 

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