Rebeldes no coração do Império   

Lá vão os prováveis rebeldes. Estamos numa rua de Londres. Mais precisamente em Oxford Street. Os possíveis rebeldes estão a uns dez metros de mim e eu os sigo. Na falta de um jornal onde possa fazer um buraco de observação - como nas antigas histórias policiais - vou fingindo que olho vitrinas e não os perco de vista.

Há cerca de dois minutos estiveram diante desta mesma vitrina onde estou agora e cujos objetos expostos jamais poderiam provocar, por si sós, a delirante cena de ainda há pouco. Aliás, foi naquele momento que passei a considerá-los rebeldes, quase sem nenhuma dúvida. Depois que se beijaram e da forma como o fizeram, seria difícil que me enganasse. Rebeldes em pleno coração do Império. Sem exagero: um beijo que ao menos na aparência lembrava o de Deborah Kerr ou Greer Garson com um galã cujo nome me escapa. Teria sido o de Irene Dunne com Walter Pidgeon?

Desconfio do que vocês estão pensando. Isto é, filmes onde as sequências finais de cenas de amor terminavam sempre com a câmera focalizando uma lareira com achas acesas ou o mar batendo em rochedos. Creiam. Tenho sérios indícios para admitir que não seja apenas isso.

Ainda ontem à noite, no Soho, pude ver coisas consideradas normais nesta época: todos homens e mulheres, com cabelos muito compridos, oclinhos azuis ou roxos, jeans sujos e rasgados, camisas amarrotadas, barbas de meses e um conveniente ar de desligação total. Tudo isso completado pelos relacionamentos os mais - como se diz - descontraídos. Além disso, um pouco mais tarde, em Piccadilly Circus havia um casal fazendo amor nos degraus do monumento que fica no meio da praça. Em volta deles alguns jovens conversavam entre si e nem prestavam atenção à dupla. Sexo sem mistério.

Posso ouvir, agora aqui em Oxford Street, vozes no ar que partem para o ataque e, desconfio, se dirigem aos já identificados rebeldes: “Aqueles filmes antigos apenas empurravam as coisas para debaixo do tapete. Você nunca ouviu falar da censura católica? Nosso movimento nasceu em Liverpool, derrubou a lareira a marretadas e provou que o mar batendo no rochedo era apenas um cenário de papelão. O mistério não existia. O ápice da sequência amorosa resumia-se na ocupação de um espaço virtual por uma seção de tronco de cilindro. Ah! Ah! Ah!”

Peguei minha pequena caderneta tentando ser um bom aprendiz de farejador e anotei as observações dessas vozes que saíam do fog onde os prédios se diluíam num cenário convencional de tarde londrina. Continuei a acompanhar o movimento dos rebeldes. A dúvida persistente: seriam mesmo apenas remanescentes da lareira e não rebeldes verdadeiros? Avalio: aquele beijo não teria sido suficiente para uma definição? Desfilo na memória mais alguns detalhes. Ressalva-se em primeiro lugar que não sei se é uma preferência pessoal ou algo que obtenha consenso entre os homens. De minha parte, tenho fascínio especial pela forma como a mulher ocupa o espaço. Especialmente quando se movimenta. Há um certo ritmo, por exemplo, que transforma o andar de uma mulher numa obra de arte.

No caso especial dessa londrina havia cabelos louros flutuando à brisa leve e sua figura esguia e bela, pernas muito longas, se movimentando no fog me levava irresistivelmente para um desses quadros de Degas que conseguiram capturar o movimento e cristalizá-lo no instante preciso em que adquire uma dimensão definitivamente bela. Posso, por exemplo, colocar essa moça londrina na plateia de um desses quadros de Degas tendo como motivo Longchamps com todo o seu requinte e sua aura de momento inesquecível da presença humana no mundo. Se os pessimistas estiverem certos, no futuro remoto, quando as baratas, nossas herdeiras, olharem essa cena, morrerão fulminadas pela humilhação que lhes será imposta por essa manifestação sublime do humano.

“Muita calma” - recomendo a mim mesmo. É preciso olhar com objetividade. Atenção. Neste momento o casal parou numa sorveteria. O rapaz de calça cinza e camisa social branca, dessas usadas para assistir sessões solenes, deu para a moça uma longa taça de sorvete de coco. Depois dessa cena tive um impulso de chegar perto deles e pedir-lhes que não fossem tão radicais. Poderia haver represálias. Mas não falei nada. Entrei na sorveteria e também pedi um sorvete de coco. Era urgente ver mais de perto esses rebeldes, era preciso eliminar quaisquer dúvidas e isso já me acelerava a pulsação.

Então, nesse mesmo momento, vi o casal de namorados trocando uma carícia muito sutil. Mas a prova definitiva veio com o olho no olho dos rebeldes. Concluí com certeza que eles haviam não apenas ultrapassado a lareira como também Liverpool e Piccadilly Circus. Anotei na minha caderneta: “É provável que as baratas tenham que esperar muito ainda.”

Publicado originalmente no livro Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.

 

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