É verdadeira, Pedro, a tristeza que agora nos assalta provocada pelas luzes amarelas e mortiças de Calçado, para você e, para mim, de Araguaia. Ambas situadas num passado que às vezes duvidamos tenha existido. Talvez menos para você, que é um jovem, mas eu tenho que acionar uma fictícia picareta usada para pesquisas arqueológicas a fim de encontrar fiapos de mim mesmo perdidos no tempo. Confesso que quando os encontro creio ter a mesma sensação de vitória dos arqueólogos que descobrem algo mais sobre os neandertal.
Um desses fiapos me revelam que houve sim uma luz amarela e mortiça que vinha de um bar, despejada sobre tufos de grama verde da única rua de Araguaia, mergulhada numa escuridão imemorial. Não havia mais nenhum grão de luz na rua, o que fazia me sentir numa ilha solitária e tristonha. Um resquício do selvagem, com medo da noite, onde estariam escondidos os fantasmas malignos que certamente o agrediriam e talvez o matassem. Não sei se você conhece o relato de um naturalista que investigava povos tribais. Ao perguntar por que eles não saiam à noite, recebeu a maior gargalhada coletiva que já ouvira. Os nativos gargalharam durante dez minutos. Indagando então o que se passava eles lhe disseram que era absurda a pergunta por que todos sabiam que a floresta era povoada por fantasmas que só esperavam a oportunidade para os atacarem se saíssem à noite. Veja então, Pedro, que as gargalhadas que acompanham as anedotas têm um tempo histórico.
Mas, voltando à minha Araguaia, é preciso dizer que no dia seguinte ao acordar, envolvido pelo macio e seco ar invernal, ouvindo o Prest, o ferreiro, martelando em sua bigorna, percebia vagamente que se construía uma nova realidade contra as noites escuras. A propósito, a ferraria do Prest transformou-se com seus descendentes na firma LP que produz, há cem anos, foices, pás, enxadas facões, etc., utilizados na agricultura. Atualmente é a mais antiga empresa industrial do Espírito Santo. Há algum tempo a visitamos, em Araguaia, com nosso amigo Carlos Campos Jr.
Mas, nessa escavação recente, surgiu também aquele menino sentado à mesa do café saboreando o pão feito na padaria do nono e, então, o perfume exalado por esses primeiros tempos apagava a luz mortiça da noite anterior. E, ainda, quando minha noninha sorria para mim com seu ar de solidariedade irrestrita, criava-se mais um foco de resistência que se acumulam na infância para enfrentar as durezas da vida.
Enfim, Pedro, você também disporá desses antídotos contra luzes mortiças. Basta remover as cinzas que jazem nas profundezas de uma São José do Calçado de um tempo antigo e estou certo que os encontrará.
Vitória, 10/9/15.