Veneza e Hemingway

Poderiam ser chamadas claridades? No ar, uma certa pretensão afirmativa: sim, claridades americanas. Veja como Hemingway tratou Veneza, Venice, Venezia. Amante cinquentão, menina descendente das velhas famílias venezianas, merchandising de vinhos, hotéis ... Americanão de barba grande, corajoso matador de patos, invencível machão de bagos de ouro. A grande ironia da orca assassina inanimada dentro do balcão frigorífico da peixaria. Fora dos oceanos, apenas um filé haddock dos menos apreciados.

Hemingway em Assassinos: o ponto alto do conto, da história curta, um grande momento da ficção em qualquer tempo e língua. Hemingway em Do outro lado do rio, entre as árvores, um homem acuado pela cidade de Veneza apelando para todos os estereótipos. Por isso, sempre, o copo de uísque numa mesa de fundo de bar. Um estratégia militar? Duvido. Mais do que a necessidade de guarnecer os flancos, como alega, recursos desesperados das claridades americanas em confronto com as misteriosas águas de Veneza. De algum lugar da memória vem: “Veneza é uma cidade que sobrou da festa.” Talvez pudesse acrescentar: mas que festa! Hemingway continua de copo na mão fazendo brindes para fantasmas. Não há o menor resquício de falta de respeito para com essa figura patética. O drama da incomunicabilidade humana adquire todo o seu esplendor funéreo. Não posso deixar de me comover com esses escombros. Escute com atenção: aqui alguém fala em “Maria Vergine” com o mais genuíno sotaque vêneto. Meu Deus. Este é um escombro que não sei como foi utilizado - utilização em seu sentido plenamente utilitário de instrumento de comunicação do povo. Não sei. Aliás, pensando bem, não concordo. Aqui não há povo. Neste exato momento não há povo em Veneza. Aqui há apenas venezianos. Eu, também americano, cheio das claridades americanas, recebo uma saudação dos venezianos e tento lhes dizer que eles foram o meu ontem. Contudo, eles me olham e me dizem: “... il Mister che ha arrivato d’America.” Não digo nada. Há uma porção de explicações objetivas mas, muito mais objetiva é essa ganância do veneziano em me tirar mais dólares. “Tanto assim por um simples café?” “Si, brasiliano, scuse.”

Perco-me no cais degli Schiavoni. Ouço sinos e vozes d’antanho. Vou me aproximando das águas que balançam na minha frente junto com as gôndolas flutuando num coquetel de luzes. Veneza, Venice. Venezia dos meus amores.

No canto do ringue diz Hemingway: “Veneza é uma cidade linda como o diabo.” Evidente: o machão não pode ser vencido. Alega luta contra alianças poderosas e sobrenaturais. Belzebu participou do banquete veneziano? Não sei. O que sei é que nosso mestre Hemingway ficou de fora. Um penetra descoberto no último minuto e jogado de fraque e tudo no Canal Grande.

Publicado originalmente no livro Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.

 

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